Mário Bimbato
A FAZENDA DO SALTO
Mario Bimbato
Prólogo
Canta, ó Musa, a aurora
Da minha vida na Fazenda
Do Salto, transformada outrora
Da minha infância na vivenda.
Canta os primórdios da vida
Na terna e tão doce plaga,
Da minha infância querida,
Da meninice minha saga.
Cantando, e assim dividir
Com outros a minha sorte,
E destarte repartir
Destes versos o aporte.
Aos leitores (se é que os tenho)
Querendo comunicar,
Com toda arte e engenho,
Minha epopeia e falar.
A Fazenda
Foi lá na Fazenda do Salto,
Num vale coberto de flor,
De Goiás no belo Planalto,
Junto à Serra do Tombador,
Que minha infância eu vivi,
Numa área bucólica e serena,
Que fica bem longe daqui,
Onde sopra uma aura amena.
Esse nome a Fazenda tinha,
Pois do Salto do Corumbá,
Ficava bastante vizinha,
Cerca de mil passos de lá.
O lugar era um paraíso,
Por Deus ali colocado:
Da natureza o sorriso,
Num idílio abençoado.
A Fazenda bois não criava,
Por causa de erva daninha,
Que o animal cedo matava,
E assim, pois, nenhum boi tinha.
Mario de Andrade
Parodiando então,
A Serra do Tombador
Não tinha esse nome, não.
Ali tombou carro e caminhão,
Tanto, que do Tombador
Se chamou, desde então,
Do Tombador, sim, senhor.
Na Serra do Tombador,
Com vista para o Salto,
No cimo, seja donde for,
Sopra o vento rijo do alto.
O rio Corumbá
O Corumbá tem nascente
Dos Pireneus lá na Serra,
E vai em sua corrente,
Para o sul serpeando a terra.
A quatro léguas do lugar,
Onde nasce, um belo salto
Vai majestoso formar,
De um penhasco bem alto:
É o Salto do Corumbá,
Que borbota sobranceiro,
Agitando as águas lá,
Onde cai num desfiladeiro.
As cascatas que eu vejo cá,
Por bela que seja a visão,
Não são como as do Corumbá,
Não cantam como as do Salto, não.
Da casa onde eu morava,
O murmurar da cachoeira
De noite eu bem escutava,
A espadanar na pedreira.
Já o rio margeando,
Muito buriti havia,
Uma palmeira espalmada,
Que altaneira se via.
O Corumbá, outrora piscoso
Já foi do Salto na região:
Dourado, o mais vistoso,
Dos peixes que havia então.
Uma elevada barragem,
Mais abaixo construída,
Dos montes entre a passagem,
Impediu-lhes a subida.
Corumbá é o nome também
Da cidade que fica a jusante,
Na vertente de um morro além,
Duas léguas e meia adiante.
A propósito, o Salto jaz
Nos limites do município
De Corumbá-de-Goiás,
Diga-se logo em princípio.
O Corumbá leva mensagem
Lá do sertão para o mar:
Alguém disse com a vantagem
De quem bem sabia falar.
Bernardo Elis, escritor,
Em Corumbá nascido,
Foi outrossim o autor
Do dito acima referido.
Aos Imortais na Academia,
Relatou no discurso
De posse, com maestria,
Do Corumbá o percurso:
Desde a sua nascente,
Na Serra dos Pirineus,
Até o Salto mais à frente,
Descrevendo aos pares seus.
A sede da Fazenda
Lá do Salto a Fazenda
Tinha uma sede senhorial,
Uma elegante vivenda,
De estilo colonial:
Ornada de beirais formosos,
Com flor de lis rematados,
E telhados primorosos,
Que se viam dos lados.
E vidraças que se abriam
Nas paredes da mansão,
Ali também se viam
Adornando o casarão.
À Diocese pertencente,
Recebida por doação,
De repouso como ambiente,
Ao clero servia então.
Foi o fazendeiro João Paulino
Da doação o autor,
Um cavalheiro grã-fino,
Homem de grande valor.
Era Dom Emanuel
O arcebispo de Goiás,
Louvado em gente fiel,
De meu pai mandou atrás.
Dom Emanuel, assim dizem,
Queria alguém audacioso,
De italiana origem,
Honesto e operoso.
De ascendência italiana,
Capixaba de nascença,
Caiu meu pai na diocesana
Do prelado preferência.
Do Padre Trindade, aliás,
Deputado Federal,
Pelo Estado de Goiás,
Era amigo pessoal.
Tal relação foi importante
Para a vida futura:
A amizade constante
Cria uma base segura.
Pela autoridade eclesial
Foi meu pai então convidado
A tomar conta do local,
Para tanto preparado.
O convite adrede veio -
Uma oportunidade de truz -
Sem terra para o semeio,
Surgiu como uma luz.
Com ele, Domingos Bimbato,
Morador de Cachoeiro,
Dom Emanuel fez um trato,
Em que não entrava dinheiro:
Salário não recebia,
Mas o que colhia e criava,
Tudo a papai pertencia,
E desse modo se pagava.
Saindo de Cachoeiro
Eu sou, modéstia à parte,
Da cidade de Cachoeiro
De Itapemirim, destarte,
Vou brincando galhofeiro.
Assim gostam de brincar,
Com certo engenho e arte,
As pessoas do lugar,
De tal fazendo estandarte.
Eu nasci na zona rural,
O ano inteiro cultivada,
De viçoso cafezal,
Pela brava italianada.
De lá eu pequeno saí,
Para o sertão de Goiás -
Um lugar distante daqui,
Que os anos não trazem mais.
Com meus pais e minha irmã
Dalva, inda criança de colo,
Partimos então de manhã,
Com a matula a tiracolo.
De Cachoeiro saímos,
Fazendo a viagem de trem,
Dali, assim, nós partimos,
Com nossa honra também.
Andamos por longes terras,
Em nossa longa jornada,
Cruzamos por várias serras
E planícies na estrada.
A Anápolis, em hora
Matutina, chegamos,
Donde fomos embora,
De carro de boi e viajamos:
O carro com seu buu,
Causado pelo cocão -
Puxado por boi zebu -
Do mancal por fricção;
Sentados no requebém,
Com folhas de bananeira
Contra o sol cobertos também,
Protegidos dessa maneira.
Numa fazenda paramos,
De Corumbá na estrada,
Ali então demoramos
Alguns dias de estada.
Era Clemente Altoé,
Quem dessas terras cuidava,
Preposto de Dom Emanuel,
Que com este versava.
De papai conhecido,
Clemente era também
Em Cachoeiro nascido,
Operoso como ninguém.
Corumbá-de-Goiás
De carro de boi novamente,
A Corumbá nós chegamos -
Uma cidade envolvente -
Onde alguns dias ficamos.
Pelos bandeirantes
Fundada, à cata de ouro,
Em suas idas constantes
À busca então de tesouro.
A cidade inda conserva,
Em seus casarões, a colonial
Aparência, e preserva
A tradição cultural.
Sendo de Dom Emanuel
Muito bem referido,
Do qual amigo fiel,
E por ele protegido;
Somou também a amizade,
Para a gente do lugar,
Com o Padre Trindade,
Para a crédito comprar:
Mantimentos e semente,
Pois, a Corumbá ele chegou,
Sem dinheiro, insolvente,
E tudo fiado comprou.
Mais utensílios de cozinha,
Ferramentas para lavoura
E o que mais convinha,
Como roupas e tesoura.
Deus foi servido ajudar,
Pois, só depois da colheita,
Comprou para então pagar,
Que assim faz a gente direita.
Entre os comerciantes,
Que lhe venderam fiado,
Foram os negociantes
Edmir e Felinho Curado.
E cumpre mencionar
Juquinha e Inácio também,
Entre as pessoas do lugar,
Que assim lhe venderam, pois bem.
Canto dos ilustres varões
A sua benevolência,
Que, em várias ocasiões,
Provaram a munificência.
Em nome, pois, de meu pai
E de meu próprio também,
Esta mensagem aqui vai
De quem agradece a alguém.
Até do Salto à Fazenda,
De carro de boi outra vez,
Segundo a nossa agenda,
Mostramos intrepidez.
Numa casa arejada,
Junto à sede construída,
Fixamos nossa morada,
E ali vivemos a vida.
Com meus pais e minha irmãzinha,
Sem nenhum vizinho por perto,
Vivi como a ave que aninha,
Na solitude do deserto.
Mal me lembro da viagem,
Pois nem dois anos eu tinha,
Só uma pálida imagem
Ficou na memória minha.
Doces recordações
Homero, o poeta, imitando,
A Aurora com seus róseos dedos,
O sol já vai radiando,
Sorrindo nos arvoredos.
Também vistoso e luzido,
Era o anoitecer -
E o céu de estrela esparzido -
Que esplêndido era de ver!
Outrossim, na alvorada,
Daquele aprazível lugar,
Alegre, a passarada
Começa feliz a cantar.
De Mindinha Villa-Lobos,
Vou esta letra entoar,
Que tem os suaves arroubos
Da madrugada a raiar:
"Lá no céu,
A estrela d'alva anuncia
O nascer
De mais um formoso dia."
"O galo canta bem cedinho,
Despertando a caboclada,
A passarada deixa o ninho,
E vem saudar a alvorada."
Uma adutora captava
No Salto água cristalina,
Que, por um rego banhava
A Fazenda, como da mina;
Rente à minha morada,
De rosas e lírios margeado,
Perfumoso na valada,
Que eu aspirava deliciado.
Enquanto mamãe, lavando
Roupa, cantava, eu ouvia,
No rego me banhando,
E encantado me sentia.
Mamãe meu berço afofava
De paina com travesseiro,
E eu então me acomodava
No leito, feliz e fagueiro.
Visitas ilustres
Certa vez à Fazenda veio
O arcebispo, Dom Emanuel,
Em seu fino Lincoln a passeio,
E com seu típico anel.
Doutra feita, foi Dom Abel,
Então bispo de Goiás,
De carro, e um padre fiel,
Que o dia ali passou, aliás.
Geraldo Campos, o prefeito,
De Corumbá, pois, então -
Um cidadão mui direito -
Vinha em seu caminhão.
Num domingo, pela manhã,
Vieram com o Padre Cirilo,
Mizita e Goiany, sua irmã,
Vestidas em faceiro estilo.
Mizita, a estimada diretora,
Da escola, com grã valor,
De Corumbá, era a flora,
E Goyany, também uma flor.
Ambas de lá professoras,
Foram com o Padre Cirilo
Passear no rio por horas,
Onde cantava o grilo.
De quando em quando era a visita
De Clemente Altoé -
Que vinha em sua égua catita -
E nosso amigo de fé.
Clemente depois se tornou
De crisma o meu padrinho,
Por isso, então me estimou,
Sempre com muito carinho.
Para as ilustres visitas,
Mamãe galinha preparava
Com polenta, que, das ditas
Pessoas, cada qual saboreava.
Nossos vizinhos
Nosso mais próximo vizinho
Era o fazendeiro Silvestre,
De Corumbá no caminho,
Em sua morada campestre.
Ali havia um monjolo,
Movido pela água dum rego,
Batendo, quebrando o miolo
Dos grãos, no ledo sossego.
Silvestre e Babita, sua esposa,
Atentos nos recebia,
Ela, mui gentil e bondosa,
Quitute nos oferecia.
Mais adiante ficava
De Bernardo Aquilaz
A estância, onde criava
Boiada, com um capataz.
Ele e Branca, a esposa,
De jabuticaba possuíam
Uma floresta viçosa
E muitos lá então iam
As frutas chupar, um bocado;
Jabuticaba ali havia
Tanta, que eu, no pé trepado,
A fruta, guloso, engolia.
No caminho acedente,
Margeado de muita flor,
Ao longe, na vertente
Da Serra do Tombador,
Surgiam formosos regatos -
Um vistoso panorama -
Descendo, pelos verdes matos
Da Serra, por entre a rama.
Na crista da Serra se via,
Altaneiro e isolado,
Um buriti, que sobressaía,
"Buriti Sozinho", chamado.
Pinduca era o sitiante
Mais próximo da Fazenda,
Ao norte, uma légua distante,
Popular dono de uma venda.
Sua casa então se via,
Após uma aguada,
Que nessa época havia,
De buritis margeada.
Outras lembranças
Havia muita goiabeira,
Também mangueiras havia,
Limoeiro e laranjeira,
Na Fazenda bravia.
Na quinta, de todo lado,
Ouvia-se, de cá e de lá,
Do pas'so preto o trinado
E o canto do sabiá.
A cercania da Fazenda
Do Salto do Corumbá
Era outrossim a vivenda
Do garboso lobo guará,
Que, em bando, à noite uivava,
De minha casa junto ao muro,
E eu, com medo, escutava
O ulular no escuro.
Luz elétrica não havia,
Naquele distante sertão:
Quando o sol se escondia,
Era uma escuridão.
O poente, o sol refletindo,
Nas pedras da montanha,
Parecia uma onça rugindo:
Coisa realmente estranha.
A Serra dos Pireneus
A Serra dos Pireneus,
Cerca de uma légua distante
Lá da Fazenda, nos seus
Montes encerra bastante
Riqueza aos visitantes,
Como cristais de vária cor,
Nos caminhos circundantes,
E bem mais coisas de valor.
Na crista da Serra se via
Uma capela estadeando,
De quartzo verde a alvenaria,
Dentro revestida estando.
Sítio de anual romaria,
Muita gente ali acampava,
Rezando a Ave-Maria,
E ao pé da igrejinha cantava.
Lobisomeme outras histórias
Do lobisomem se dizia
Que, em noite de lua cheia,
Às vezes aparecia -
Um bicho de cara mui feia.
Algum visitante jurava
Ter visto assombração,
Que os passantes assustava,
E causava estupefação.
Às vezes era a folhagem,
Pelo vento revolvida,
A origem, então, da miragem
De coisas da outra vida.
De casas mal-assombradas
Também se ouvia falar,
Mormente de moradas,
Retiradas do lugar
Era voz então propalada
Que índios por perto havia,
De assustar a petizada,
Que, sozinho, longe não ia;
Longe não ia o menino,
Com medo de ser capturado
Por índios, e ser o bambino
Pra longe, bem longe levado.
Pirilampos
Ao anoitecer, pelos campos,
Que ao longe se estendiam,
Se viam os pirilampos,
Que em nuvens entreluziam.
Canto o insigne poeta,
"O Condoreiro" baiano,
Que, como ninguém, interpreta
O sentimento brasiliano:
"E, em lindos cardumes,
Sutis vagalumes
Acendem os lumes
Pro baile na flor."
"E então nas arcadas
Das pétalas doiradas,
Os grilos em festa
Começam a orquestra
Febris a tocar..."
Disparada a cavalo
Eu montava um cavalo baio,
Chamado Douradinho,
Aprendi com algum ensaio,
Ele era bastante mansinho.
Papai ua mula cavalgava,
Chamada Capetinha,
Era arisca e pulava,
Com quem prática não tinha.
Aos cinco anos de idade,
Montado no Douradinho,
Ia com meu pai à cidade,
Ele, na besta, a caminho.
Certa vez, meu cavalo,
De Corumbá na estrada,
Disparou assim de estalo,
Galopando em retirada,
Por uma fêmea atraído;
As rédeas, firme, segurei,
No arreio firmei, soerguido,
Até que a montaria parei.
Papai depois me alcançou,
A Capetinha trotando;
A disparada não me assustou,
E prossegui cavalgando.
A companhia de estradas
Junto a Deus intercessora,
A clemente Virgem Maria,
Enviou-nos em boa hora
De estradas uma companhia.
Quinhentos sóis já eram passados,
Quando ali acampou,
E então praqueles lados,
Uma companhia assentou:
Construir uma estrada,
Que até ao norte do Estado,
Ligasse, na empreitada,
Anápolis, pelo cerrado,
E cortasse a serrania,
No audacioso projeto,
Rompendo a mata bravia,
E os campos, cruzando aberto.
Com pás, enxadões e enxadas,
Carroças pra tirar a terra,
Por tropa de mulas puxadas,
E picaretas cortando a serra.
Às vezes, a dinamite,
Estrondosa, explodia,
Quebrando o arrebite,
Da angulosa pedraria.
A companhia fez seu escritório
Lá na sede da Fazenda,
Onde instalou o diretório,
E fazia sua agenda.
Era Mário, jovem engenheiro,
Quem chefiava a companhia
E o pessoal empreiteiro
Da empresa que ali construía.
De manhã, bem cedinho,
Na bica eu o encontrava,
Quando ele estava sozinho,
Enquanto o rosto lavava.
Uma vitrola, movida
A manivela, entoava
Música ali ouvida;
Entre outras, se escutava:
"Sereno, sereno cai,
Sereno deixou cair,
Sereno da madrugada
Não deixou meu bem dormir."
Com o pessoal ali acampado,
Mamãe, com base na troca,
Aprendeu um bom bocado
De cuscuz, a beiju e tapioca.
Matando um boi
Certa vez, presenciei
Um boi nelore abater,
E então, pasmo, vivenciei
O sangue da goela a correr.
A gente, em silêncio, assistia
À cena cruenta, e o animal,
Sem tugir nem mugir, nem gemia,
Até que dobrou o espinhal.
Polenta e outras iguarias
Polenta eu também comia,
E carne da lata de banha,
O leite de cabra eu bebia
Saúde que se arrebanha.
No terreiro da doce morada,
Uma engenhoca havia,
Onde da cana imprensada,
Garapa então se bebia.
Papai capado matava,
Linguiça e chouriço fazia -
O porco bem dissecava -
Mostrando-lhe a anatomia.
Do toucinho banha fazia,
Que em latas guardava,
E a carne, que, sempre havia,
Assim também conservava.
Não havendo geladeira,
Nem sequer, energia
Elétrica, era, pois, a maneira
De manter a caloria.
Já, então, a carne de gado,
Num arame, salgada,
Permanecia um bocado
Ao sol, assim conservada.
Da carne de porco a linguiça,
Também após temperada,
Ao sol secava inteiriça,
E assaz apimentada.
A noite se clareava,
À luz de um lampião,
Que a casa iluminava,
Quando era a ocasião.
A velha cigana
Uma cigana anciã vendeu
A mamãe uma chaleira
De cobre, e escondeu
O defeito de maneira
Que, olhando, não se via;
Minha mãe de boa-fé comprou,
Pois a bom preço a adquiria,
E a chaleira assim pagou.
Mais tarde viu que havia
Sido pela cigana lograda,
Pois, sem saber, adquiria
Da velha uma peça furada.
Mamãe ficou furiosa,
Mas, quando a raiva passou,
Tornou-se então briosa,
E à bruxa apelidou
"Concom", chamando à cigana,
E da anciã a dicção imitando,
Pois, assim, a ratazana
Vivia pronunciando.
O boró
O pessoal da companhia
Era pago com o boró,
Cartão que dinheiro valia,
Fiado no crédito, só.
O boró também circulava
Na cidade como dinheiro,
Pois então escasseava
Na praça o novel cruzeiro.
Não só este escasseava,
Como já não se imprimia
O mil réis, que também faltava,
E a patuleia, esta sofria.
A companhia ficou
Dois anos ali acampada,
E muita saudade deixou
De sua alegre estada.
Os bichos da Fazenda
Meu cão, Vigilante chamado,
Em minhas pernas se enroscava,
Com isso querendo agrado,
E eu seu dorso afagava.
De nome Xingu, o meu gato,
Com ele eu às vezes brincava,
Eu fazia gato e sapato,
E Xingu nem sempre gostava.
Certa vez puxei o seu rabo,
E o gato minha perna dentou:
Casou-me um ferimento brabo,
E mamãe com tição queimou.
Foi a Divina Providência,
Que sua mão guiou:
Eu não tinha consciência
Do mal que me ameaçou.
Tal ação foi providencial:
Eu, por certo, escapei
De uma infecção, talvez fatal,
E de dor eu gritei, gritei.
Os porcos daquela morada
Viviam soltos, uma beleza,
Que primorosa porcada,
A mais bela da redondeza!
Amiúde a manada ia
Espojar-se num pantanal,
Que na vizinhança havia,
Perto de um mangueiral.
Após chegar a companhia,
Todo o conjunto porcino -
O seu grunhido se ouvia -
Ficou preso no esterquilino.
A roça do Borá
Montado num burrico eu ia
Até a roça do Borá,
Nome do corgo que havia,
Banhando o terreno por lá.
Eu levava num embornal
O almoço da jornada,
Sendo o prato principal,
Carne seca e feijoada.
Papai a um cigarro acendia,
De palha, e fumo picado,
Que no tição acendia,
E o toco ficava guardado,
Por sobre a orelha, apagado,
Para que o acendesse,
Outra vez esbraseado,
Quando lhe apetecesse.
A caminho da lavoura eu via,
O doce regato margeando,
Caju, ingá, melancia,
E a passarada voando.
Com dois jacás o burrinho
Já vergando voltava,
De casa pelo caminho,
Até que à morada chegava.
Do córrego no arcano,
Em profusão havia rosas,
Por isso, de um parnasiano
Lembro estas letras formosas:
"Sonho com jambos e rosas,
Com as madrugadas formosas,
Deste formoso sertão:
Meu sonho é como a canoa,
Que voa, que voa, e voa
Nas águas do ribeirão."
Mudando para a cidade
Vendendo milho e capado,
Arroz e feijão tropeiro
Ao pessoal ali acampado,
Meu pai juntou dinheiro:
Dois contos de réis, pra comprar,
Na cidade de Corumbá,
Uma casa para morar,
Quando mudasse para lá.
Pois eu ia chegando à idade,
De para a escola entrar,
E uma boa casa na cidade
Passamos a habitar.
A companhia dois anos ficou,
Na Fazenda acampada,
E muita saudade deixou
De sua alegre estada.
Na Fazenda então ficamos
Por cinco anos morando,
Até que, pois, nos mudamos,
A nova casa habitando.
Primeiras lições
De meu pai tomando lições,
Comecei a ler e a escrever,
E as quatro operações
Aprendi também a fazer.
Antes de para a escola entrar,
Isso em casa aprendi,
Pois sempre gostei de estudar,
Às vezes com frenesi.
Primeiras canções
Enquanto meu berço embalava,
Suaves canções de ninar
Mamãe com ternura cantava,
E assim meu sono a velar.
A minha mãezinha ouvindo,
Comecei a imitar,
E suas canções repetindo,
Logo aprendi a cantar.
A sua canção preferida -
Vide só, quanta beleza! -
No berço por mim aprendida,
Era "Sonhando com Veneza":
"É Veneza um jardim da Itália,
Belo jardim a beira-mar plantado,
É a glória do povo italiano,
Belo sonho de todo missionado."
"Quisera eu ver Veneza bela,
E gôndolas em noite de luar,
És tu, Veneza, um mundo encantado,
Enfim viver, viver, sonhar."
"Mas neste doce anelo,
Fora um sonho belo,
Contigo a beira-mar,
Viver, viver e amar!
"Mas neste doce anelo,
Fora um sonho belo,
Contigo minha linda flor,
Viver, viver de amor!"
Essa tão graciosa canção,
De autoria desconhecida,
Dentro do meu coração,
Guardei por toda a vida.
De bom ouvido era dotada,
E de voz celestial,
Aptidão abençoada,
De origem divinal.
Pois todo dom de Deus provém,
Que o confere às criaturas,
Para glória sua no Além,
Lá do céu nas alturas.
Esta dádiva eu herdei:
O dom também de cantar,
E, se hoje cantar eu sei,
Devo a minha mãe escutar.
Epílogo
A Fazenda foi decaindo,
Depois que papai se mudou;
Foi sumindo, sumindo,
Até que nada mais restou.
Aqui termina a história
Da Fazenda do Salto, então
Para registrar-lhe a memória
De todos no coração.
Na cidade de Corumbá,
Foi onde o primário eu cursei,
E muitos amigos fiz lá,
Na escola onde estudei.
De nascimento, eu sou
Da cidade de Cachoeiro
De Itapemirim, e eu vou
Assim dizendo primeiro.
De criação sou, porém,
De Goiás no altiplano,
Com orgulho, pois bem,
Corumbaense goiano.
São Paulo, novembro de 2015
Mario Bimbato, mestre em Direito pela
Universidade de Yale, é escritor, poeta e cantor.
mariobimbato@gmail.com
A FAZENDA DO SALTO
Mario Bimbato
Prólogo
Canta, ó Musa, a aurora
Da minha vida na Fazenda
Do Salto, transformada outrora
Da minha infância na vivenda.
Canta os primórdios da vida
Na terna e tão doce plaga,
Da minha infância querida,
Da meninice minha saga.
Cantando, e assim dividir
Com outros a minha sorte,
E destarte repartir
Destes versos o aporte.
Aos leitores (se é que os tenho)
Querendo comunicar,
Com toda arte e engenho,
Minha epopeia e falar.
A Fazenda
Foi lá na Fazenda do Salto,
Num vale coberto de flor,
De Goiás no belo Planalto,
Junto à Serra do Tombador,
Que minha infância eu vivi,
Numa área bucólica e serena,
Que fica bem longe daqui,
Onde sopra uma aura amena.
Esse nome a Fazenda tinha,
Pois do Salto do Corumbá,
Ficava bastante vizinha,
Cerca de mil passos de lá.
O lugar era um paraíso,
Por Deus ali colocado:
Da natureza o sorriso,
Num idílio abençoado.
A Fazenda bois não criava,
Por causa de erva daninha,
Que o animal cedo matava,
E assim, pois, nenhum boi tinha.
Mario de Andrade
Parodiando então,
A Serra do Tombador
Não tinha esse nome, não.
Ali tombou carro e caminhão,
Tanto, que do Tombador
Se chamou, desde então,
Do Tombador, sim, senhor.
Na Serra do Tombador,
Com vista para o Salto,
No cimo, seja donde for,
Sopra o vento rijo do alto.
O rio Corumbá
O Corumbá tem nascente
Dos Pireneus lá na Serra,
E vai em sua corrente,
Para o sul serpeando a terra.
A quatro léguas do lugar,
Onde nasce, um belo salto
Vai majestoso formar,
De um penhasco bem alto:
É o Salto do Corumbá,
Que borbota sobranceiro,
Agitando as águas lá,
Onde cai num desfiladeiro.
As cascatas que eu vejo cá,
Por bela que seja a visão,
Não são como as do Corumbá,
Não cantam como as do Salto, não.
Da casa onde eu morava,
O murmurar da cachoeira
De noite eu bem escutava,
A espadanar na pedreira.
Já o rio margeando,
Muito buriti havia,
Uma palmeira espalmada,
Que altaneira se via.
O Corumbá, outrora piscoso
Já foi do Salto na região:
Dourado, o mais vistoso,
Dos peixes que havia então.
Uma elevada barragem,
Mais abaixo construída,
Dos montes entre a passagem,
Impediu-lhes a subida.
Corumbá é o nome também
Da cidade que fica a jusante,
Na vertente de um morro além,
Duas léguas e meia adiante.
A propósito, o Salto jaz
Nos limites do município
De Corumbá-de-Goiás,
Diga-se logo em princípio.
O Corumbá leva mensagem
Lá do sertão para o mar:
Alguém disse com a vantagem
De quem bem sabia falar.
Bernardo Elis, escritor,
Em Corumbá nascido,
Foi outrossim o autor
Do dito acima referido.
Aos Imortais na Academia,
Relatou no discurso
De posse, com maestria,
Do Corumbá o percurso:
Desde a sua nascente,
Na Serra dos Pirineus,
Até o Salto mais à frente,
Descrevendo aos pares seus.
A sede da Fazenda
Lá do Salto a Fazenda
Tinha uma sede senhorial,
Uma elegante vivenda,
De estilo colonial:
Ornada de beirais formosos,
Com flor de lis rematados,
E telhados primorosos,
Que se viam dos lados.
E vidraças que se abriam
Nas paredes da mansão,
Ali também se viam
Adornando o casarão.
À Diocese pertencente,
Recebida por doação,
De repouso como ambiente,
Ao clero servia então.
Foi o fazendeiro João Paulino
Da doação o autor,
Um cavalheiro grã-fino,
Homem de grande valor.
Era Dom Emanuel
O arcebispo de Goiás,
Louvado em gente fiel,
De meu pai mandou atrás.
Dom Emanuel, assim dizem,
Queria alguém audacioso,
De italiana origem,
Honesto e operoso.
De ascendência italiana,
Capixaba de nascença,
Caiu meu pai na diocesana
Do prelado preferência.
Do Padre Trindade, aliás,
Deputado Federal,
Pelo Estado de Goiás,
Era amigo pessoal.
Tal relação foi importante
Para a vida futura:
A amizade constante
Cria uma base segura.
Pela autoridade eclesial
Foi meu pai então convidado
A tomar conta do local,
Para tanto preparado.
O convite adrede veio -
Uma oportunidade de truz -
Sem terra para o semeio,
Surgiu como uma luz.
Com ele, Domingos Bimbato,
Morador de Cachoeiro,
Dom Emanuel fez um trato,
Em que não entrava dinheiro:
Salário não recebia,
Mas o que colhia e criava,
Tudo a papai pertencia,
E desse modo se pagava.
Saindo de Cachoeiro
Eu sou, modéstia à parte,
Da cidade de Cachoeiro
De Itapemirim, destarte,
Vou brincando galhofeiro.
Assim gostam de brincar,
Com certo engenho e arte,
As pessoas do lugar,
De tal fazendo estandarte.
Eu nasci na zona rural,
O ano inteiro cultivada,
De viçoso cafezal,
Pela brava italianada.
De lá eu pequeno saí,
Para o sertão de Goiás -
Um lugar distante daqui,
Que os anos não trazem mais.
Com meus pais e minha irmã
Dalva, inda criança de colo,
Partimos então de manhã,
Com a matula a tiracolo.
De Cachoeiro saímos,
Fazendo a viagem de trem,
Dali, assim, nós partimos,
Com nossa honra também.
Andamos por longes terras,
Em nossa longa jornada,
Cruzamos por várias serras
E planícies na estrada.
A Anápolis, em hora
Matutina, chegamos,
Donde fomos embora,
De carro de boi e viajamos:
O carro com seu buu,
Causado pelo cocão -
Puxado por boi zebu -
Do mancal por fricção;
Sentados no requebém,
Com folhas de bananeira
Contra o sol cobertos também,
Protegidos dessa maneira.
Numa fazenda paramos,
De Corumbá na estrada,
Ali então demoramos
Alguns dias de estada.
Era Clemente Altoé,
Quem dessas terras cuidava,
Preposto de Dom Emanuel,
Que com este versava.
De papai conhecido,
Clemente era também
Em Cachoeiro nascido,
Operoso como ninguém.
Corumbá-de-Goiás
De carro de boi novamente,
A Corumbá nós chegamos -
Uma cidade envolvente -
Onde alguns dias ficamos.
Pelos bandeirantes
Fundada, à cata de ouro,
Em suas idas constantes
À busca então de tesouro.
A cidade inda conserva,
Em seus casarões, a colonial
Aparência, e preserva
A tradição cultural.
Sendo de Dom Emanuel
Muito bem referido,
Do qual amigo fiel,
E por ele protegido;
Somou também a amizade,
Para a gente do lugar,
Com o Padre Trindade,
Para a crédito comprar:
Mantimentos e semente,
Pois, a Corumbá ele chegou,
Sem dinheiro, insolvente,
E tudo fiado comprou.
Mais utensílios de cozinha,
Ferramentas para lavoura
E o que mais convinha,
Como roupas e tesoura.
Deus foi servido ajudar,
Pois, só depois da colheita,
Comprou para então pagar,
Que assim faz a gente direita.
Entre os comerciantes,
Que lhe venderam fiado,
Foram os negociantes
Edmir e Felinho Curado.
E cumpre mencionar
Juquinha e Inácio também,
Entre as pessoas do lugar,
Que assim lhe venderam, pois bem.
Canto dos ilustres varões
A sua benevolência,
Que, em várias ocasiões,
Provaram a munificência.
Em nome, pois, de meu pai
E de meu próprio também,
Esta mensagem aqui vai
De quem agradece a alguém.
Até do Salto à Fazenda,
De carro de boi outra vez,
Segundo a nossa agenda,
Mostramos intrepidez.
Numa casa arejada,
Junto à sede construída,
Fixamos nossa morada,
E ali vivemos a vida.
Com meus pais e minha irmãzinha,
Sem nenhum vizinho por perto,
Vivi como a ave que aninha,
Na solitude do deserto.
Mal me lembro da viagem,
Pois nem dois anos eu tinha,
Só uma pálida imagem
Ficou na memória minha.
Doces recordações
Homero, o poeta, imitando,
A Aurora com seus róseos dedos,
O sol já vai radiando,
Sorrindo nos arvoredos.
Também vistoso e luzido,
Era o anoitecer -
E o céu de estrela esparzido -
Que esplêndido era de ver!
Outrossim, na alvorada,
Daquele aprazível lugar,
Alegre, a passarada
Começa feliz a cantar.
De Mindinha Villa-Lobos,
Vou esta letra entoar,
Que tem os suaves arroubos
Da madrugada a raiar:
"Lá no céu,
A estrela d'alva anuncia
O nascer
De mais um formoso dia."
"O galo canta bem cedinho,
Despertando a caboclada,
A passarada deixa o ninho,
E vem saudar a alvorada."
Uma adutora captava
No Salto água cristalina,
Que, por um rego banhava
A Fazenda, como da mina;
Rente à minha morada,
De rosas e lírios margeado,
Perfumoso na valada,
Que eu aspirava deliciado.
Enquanto mamãe, lavando
Roupa, cantava, eu ouvia,
No rego me banhando,
E encantado me sentia.
Mamãe meu berço afofava
De paina com travesseiro,
E eu então me acomodava
No leito, feliz e fagueiro.
Visitas ilustres
Certa vez à Fazenda veio
O arcebispo, Dom Emanuel,
Em seu fino Lincoln a passeio,
E com seu típico anel.
Doutra feita, foi Dom Abel,
Então bispo de Goiás,
De carro, e um padre fiel,
Que o dia ali passou, aliás.
Geraldo Campos, o prefeito,
De Corumbá, pois, então -
Um cidadão mui direito -
Vinha em seu caminhão.
Num domingo, pela manhã,
Vieram com o Padre Cirilo,
Mizita e Goiany, sua irmã,
Vestidas em faceiro estilo.
Mizita, a estimada diretora,
Da escola, com grã valor,
De Corumbá, era a flora,
E Goyany, também uma flor.
Ambas de lá professoras,
Foram com o Padre Cirilo
Passear no rio por horas,
Onde cantava o grilo.
De quando em quando era a visita
De Clemente Altoé -
Que vinha em sua égua catita -
E nosso amigo de fé.
Clemente depois se tornou
De crisma o meu padrinho,
Por isso, então me estimou,
Sempre com muito carinho.
Para as ilustres visitas,
Mamãe galinha preparava
Com polenta, que, das ditas
Pessoas, cada qual saboreava.
Nossos vizinhos
Nosso mais próximo vizinho
Era o fazendeiro Silvestre,
De Corumbá no caminho,
Em sua morada campestre.
Ali havia um monjolo,
Movido pela água dum rego,
Batendo, quebrando o miolo
Dos grãos, no ledo sossego.
Silvestre e Babita, sua esposa,
Atentos nos recebia,
Ela, mui gentil e bondosa,
Quitute nos oferecia.
Mais adiante ficava
De Bernardo Aquilaz
A estância, onde criava
Boiada, com um capataz.
Ele e Branca, a esposa,
De jabuticaba possuíam
Uma floresta viçosa
E muitos lá então iam
As frutas chupar, um bocado;
Jabuticaba ali havia
Tanta, que eu, no pé trepado,
A fruta, guloso, engolia.
No caminho acedente,
Margeado de muita flor,
Ao longe, na vertente
Da Serra do Tombador,
Surgiam formosos regatos -
Um vistoso panorama -
Descendo, pelos verdes matos
Da Serra, por entre a rama.
Na crista da Serra se via,
Altaneiro e isolado,
Um buriti, que sobressaía,
"Buriti Sozinho", chamado.
Pinduca era o sitiante
Mais próximo da Fazenda,
Ao norte, uma légua distante,
Popular dono de uma venda.
Sua casa então se via,
Após uma aguada,
Que nessa época havia,
De buritis margeada.
Outras lembranças
Havia muita goiabeira,
Também mangueiras havia,
Limoeiro e laranjeira,
Na Fazenda bravia.
Na quinta, de todo lado,
Ouvia-se, de cá e de lá,
Do pas'so preto o trinado
E o canto do sabiá.
A cercania da Fazenda
Do Salto do Corumbá
Era outrossim a vivenda
Do garboso lobo guará,
Que, em bando, à noite uivava,
De minha casa junto ao muro,
E eu, com medo, escutava
O ulular no escuro.
Luz elétrica não havia,
Naquele distante sertão:
Quando o sol se escondia,
Era uma escuridão.
O poente, o sol refletindo,
Nas pedras da montanha,
Parecia uma onça rugindo:
Coisa realmente estranha.
A Serra dos Pireneus
A Serra dos Pireneus,
Cerca de uma légua distante
Lá da Fazenda, nos seus
Montes encerra bastante
Riqueza aos visitantes,
Como cristais de vária cor,
Nos caminhos circundantes,
E bem mais coisas de valor.
Na crista da Serra se via
Uma capela estadeando,
De quartzo verde a alvenaria,
Dentro revestida estando.
Sítio de anual romaria,
Muita gente ali acampava,
Rezando a Ave-Maria,
E ao pé da igrejinha cantava.
Lobisomem
e outras histórias
Do lobisomem se dizia
Que, em noite de lua cheia,
Às vezes aparecia -
Um bicho de cara mui feia.
Algum visitante jurava
Ter visto assombração,
Que os passantes assustava,
E causava estupefação.
Às vezes era a folhagem,
Pelo vento revolvida,
A origem, então, da miragem
De coisas da outra vida.
De casas mal-assombradas
Também se ouvia falar,
Mormente de moradas,
Retiradas do lugar.
Era voz então propalada
Que índios por perto havia,
De assustar a petizada,
Que, sozinho, longe não ia;
Longe não ia o menino,
Com medo de ser capturado
Por índios, e ser o bambino
Pra longe, bem longe levado.
Pirilampos
Ao anoitecer, pelos campos,
Que ao longe se estendiam,
Se viam os pirilampos,
Que em nuvens entreluziam.
Canto o insigne poeta,
"O Condoreiro" baiano,
Que, como ninguém, interpreta
O sentimento brasiliano:
"E, em lindos cardumes,
Sutis vagalumes
Acendem os lumes
Pro baile na flor."
"E então nas arcadas
Das petlas doiradas,
Os grilos em festa
Começam a orquestra
Febris a tocar..."
Disparada a cavalo
Eu montava um cavalo baio,
Chamado Douradinho,
Aprendi com algum ensaio,
Ele era bastante mansinho.
Papai ua mula cavalgava,
Chamada Capetinha,
Era arisca e pulava,
Com quem prática não tinha.
Aos cinco anos de idade,
Montado no Douradinho,
Ia com meu pai à cidade,
Ele, na besta, a caminho.
Certa vez, meu cavalo,
De Corumbá na estrada,
Disparou assim de estalo,
Galopando em retirada,
Por uma fêmea atraído;
As rédeas, firme, segurei,
No arreio firmei, soerguido,
Até que a montaria parei.
Papai depois me alcançou,
A Capetinha trotando;
A disparada não me assustou,
E prossegui cavalgando.
A
companhia de estradas
Junto a Deus
intercessora,
A clemente Virgem Maria,
Enviou-nos em boa hora
De estradas uma companhia.
Quinhentos sóis já eram passados,
Quando ali acampou,
E então praqueles lados,
Uma companhia assentou:
Construir uma estrada,
Que até ao norte do Estado,
Ligasse, na empreitada,
Anápolis, pelo cerrado,
E cortasse a serrania,
No audacioso projeto,
Rompendo a mata bravia,
E os campos, cruzando aberto.
Com pás, enxadões e enxadas,
Carroças pra tirar a terra,
Por tropa de mulas puxadas,
E picaretas cortando a serra.
Às vezes, a dinamite,
Estrondosa, explodia,
Quebrando o arrebite,
Da angulosa pedraria.
A companhia fez seu escritório
Lá na sede da Fazenda,
Onde instalou o diretório,
E fazia sua agenda.
Era Mário, jovem engenheiro,
Quem chefiava a companhia
E o pessoal empreiteiro
Da empresa que ali construía.
De manhã, bem cedinho,
Na bica eu o encontrava,
Quando ele estava sozinho,
Enquanto o rosto lavava.
Uma vitrola, movida
A manivela, entoava
Música ali ouvida;
Entre outras, se escutava:
"Sereno, sereno cai,
Sereno deixou cair,
Sereno da madrugada
Não deixou meu bem dormir."
Com o pessoal ali acampado,
Mamãe, com base na troca,
Aprendeu um bom bocado
De cuscuz, a beiju e tapioca.
Matando um boi
Certa vez, presenciei
Um boi nelore abater,
E então, pasmo, vivenciei
O sangue da goela a correr.
A gente, em silêncio, assistia
À cena cruenta, e o animal,
Sem tugir nem mugir, nem gemia,
Até que dobrou o espinhal.
Polenta e outras iguarias
Polenta eu também comia,
E carne da lata de banha,
O leite de cabra eu bebia -
Saúde que se arrebanha.
No terreiro da doce morada,
Uma engenhoca havia,
Onde da cana imprensada,
Garapa então se bebia.
Papai capado matava,
Linguiça e chouriço fazia -
O porco bem dissecava -
Mostrando-lhe a anatomia.
Do toucinho banha fazia,
Que em latas guardava,
E a carne, que, sempre havia,
Assim também conservava.
Não havendo geladeira,
Nem sequer, energia
Elétrica, era, pois, a maneira
De manter a caloria.
Já, então, a carne de gado,
Num arame, salgada,
Permanecia um bocado
Ao sol, assim conservada.
Da carne de porco a linguiça,
Também após temperada,
Ao sol secava inteiriça,
E assaz apimentada.
A noite se clareava,
À luz de um lampião,
Que a casa iluminava,
Quando era a ocasião.
A velha cigana
Uma cigana anciã vendeu
A mamãe uma chaleira
De cobre, e escondeu
O defeito de maneira
Que, olhando, não se via;
Minha mãe de boa-fé comprou,
Pois a bom preço a adquiria,
E a chaleira assim pagou.
Mais tarde viu que havia
Sido pela cigana lograda,
Pois, sem saber, adquiria
Da velha uma peça furada.
Mamãe ficou furiosa,
Mas, quando a raiva passou,
Tornou-se então briosa,
E à bruxa apelidou
"Concom", chamando à cigana,
E da anciã a dicção imitando,
Pois, assim, a ratazana
Vivia pronunciando.
O boró
O pessoal da companhia
Era pago com o boró,
Cartão que dinheiro valia,
Fiado no crédito, só.
O boró também circulava
Na cidade como dinheiro,
Pois então escasseava
Na praça o novel cruzeiro.
Não só este escasseava,
Como já não se imprimia
O mil réis, que também faltava,
E a patuleia, esta sofria.
A companhia ficou
Dois anos ali acampada,
E muita saudade deixou
De sua alegre estada.
Os bichos da Fazenda
Meu cão, Vigilante chamado,
Em minhas pernas se enroscava,
Com isso querendo agrado,
E eu seu dorso afagava.
De nome Xingu, o meu gato,
Com ele eu às vezes brincava,
Eu fazia gato e sapato,
E Xingu nem sempre gostava.
Certa vez puxei o seu rabo,
E o gato minha perna dentou:
Casou-me um ferimento brabo,
E mamãe com tição queimou.
Foi a Divina Providência,
Que sua mão guiou:
Eu não tinha consciência
Do mal que me ameaçou.
Tal ação foi providencial:
Eu, por certo, escapei
De uma infecção, talvez fatal,
E de dor eu gritei, gritei.
Os porcos daquela morada
Viviam soltos, uma beleza,
Que primorosa porcada,
A mais bela da redondeza!
Amiúde a manada ia
Espojar-se num pantanal,
Que na vizinhança havia,
Perto de um mangueiral.
Após chegar a companhia,
Todo o conjunto porcino -
O seu grunhido se ouvia -
Ficou preso no esterquilino.
A roça do Borá
Montado num burrico eu ia
Até a roça do Borá,
Nome do corgo que havia,
Banhando o terreno por lá.
Eu levava num embornal
O almoço da jornada,
Sendo o prato principal,
Carne seca e feijoada.
Papai a um cigarro acendia,
De palha, e fumo picado,
Que no tição acendia,
E o toco ficava guardado,
Por sobre a orelha, apagado,
Para que o acendesse,
Outra vez esbraseado,
Quando lhe apetecesse.
A caminho da lavoura eu via,
O doce regato margeando,
Caju, ingá, melancia,
E a passarada voando.
Com dois jacás o burrinho
Já vergando voltava,
De casa pelo caminho,
Até que à morada chegava.
Do córrego no arcano,
Em profusão havia rosas,
Por isso, de um parnasiano
Lembro estas letras formosas:
"Sonho com jambos e rosas,
Com as madrugadas formosas,
Deste formoso sertão:
Meu sonho é como a canoa,
Que voa, que voa, e voa
Nas águas do ribeirão."
Mudando para a cidade
Vendendo milho e capado,
Arroz e feijão tropeiro
Ao pessoal ali acampado,
Meu pai juntou dinheiro:
Dois contos de réis, pra comprar,
Na cidade de Corumbá,
Uma casa para morar,
Quando mudasse para lá.
Pois eu ia chegando à idade,
De para a escola entrar,
E uma boa casa na cidade
Passamos a habitar.
A companhia dois anos ficou,
Na Fazenda acampada,
E muita saudade deixou
De sua alegre estada.
Na Fazenda então ficamos
Por cinco anos morando,
Até que, pois, nos mudamos,
A nova casa habitando.
Primeiras lições
De meu pai tomando lições,
Comecei a ler e a escrever,
E as quatro operações
Aprendi também a fazer.
Antes de para a escola entrar,
Isso em casa aprendi,
Pois sempre gostei de estudar,
Às vezes com frenesi.
Primeiras canções
Enquanto meu berço embalava,
Suaves canções de ninar
Mamãe com ternura cantava,
E assim meu sono a velar.
A minha mãezinha ouvindo,
Comecei a imitar,
E suas canções repetindo,
Logo aprendi a cantar.
A sua canção preferida -
Vide só, quanta beleza! -
No berço por mim aprendida,
Era "Sonhando com Veneza":
"É Veneza um jardim da Itália,
Belo jardim a beira-mar plantado,
É a glória do povo italiano,
Belo sonho de todo missionado."
"Quisera eu ver Veneza bela,
E gôndolas em noite de luar,
És tu, Veneza, um mundo encantado,
Enfim viver, viver, sonhar."
"Mas neste doce anelo,
Fora um sonho belo,
Contigo a beira-mar,
Viver, viver e amar!
"Mas neste doce anelo,
Fora um sonho belo,
Contigo minha linda flor,
Viver, viver de amor!"
Essa tão graciosa canção,
De autoria desconhecida,
Dentro do meu coração,
Guardei por toda a vida.
De bom ouvido era dotada,
E de voz celestial,
Aptidão abençoada,
De origem divinal.
Pois todo dom de Deus provém,
Que o confere às criaturas,
Para glória sua no Além,
Lá do céu nas alturas.
Esta dádiva eu herdei:
O dom também de cantar,
E, se hoje cantar eu sei,
Devo a minha mãe escutar.
Epílogo
A Fazenda foi decaindo,
Depois que papai se mudou;
Foi sumindo, sumindo,
Até que nada mais restou.
Aqui termina a história
Da Fazenda do Salto, então
Para registrar-lhe a memória
De todos no coração.
Na cidade de Corumbá,
Foi onde o primário eu cursei,
E muitos amigos fiz lá,
Na escola onde estudei.
De nascimento, eu sou
Da cidade de Cachoeiro
De Itapemirim, e eu vou
Assim dizendo primeiro.
De criação sou, porém,
De Goiás no altiplano,
Com orgulho, pois bem,
Corumbaense goiano.
São Paulo, novembro de 2015
Mario Bimbato, mestre em Direito pela
Universidade de Yale, é escritor, poeta e cantor.
mariobimbato@gmail.com
A FAZENDA DO SALTO
MINHA INFÂNCIA
Mario Bimbato
Prólogo
Canta, ó Musa, a aurora
Da minha vida na doce plaga,
Cantando aqui e agora,
Da infância a minha saga.
Cantando, quero dividir
Com outros a minha sorte,
E destarte repartir,
De meus versos o aporte.
Aos leitores (se é que os tenho)
Quero comunicar,
Com toda arte e engenho,
Minha epopeia e falar.
A Fazenda
Foi lá na Fazenda do Salto,
Num vale coberto de flor,
De Goiás no belo Planalto,
Junto à Serra do Tombador:
Que minha infância eu vivi,
Numa área bucólica e serena,
Que fica bem longe daqui,
Onde sopra uma aura amena.
Esse nome a Fazenda tinha,
Pois do Salto do Corumbá,
Ficava bastante vizinha,
Cerca de mil passos de lá.
O lugar era um paraíso,
Por Deus ali colocado –
Da natureza o sorriso –
Um idílio abençoado.
Mario de Andrade
Parodiando, senão,
A Serra do Tombador
Não tinha esse nome, não.
Ali tombou carro e caminhão,
Mas tanto, que do Tombador
Se chamou, desde então,
Do Tombador, sim, senhor.
Na Serra do Tombador,
Com vista para o Salto,
Na direção, seja qual for,
Sopra o vento rijo do alto.
O rio Corumbá
O Corumbá tem nascente
Dos Pireneus lá na Serra,
E vai em sua corrente,
Para o sul serpeando a terra.
A quatro léguas do lugar,
Onde nasce, um belo salto
Vai majestoso formar,
De um penhasco bem alto:
É o Salto do Corumbá,
Que borbota sobranceiro,
Agitando as águas lá,
Onde cai num desfiladeiro.
As cascatas que eu vejo cá,
Qualquer que seja a visão,
Não são como as do Corumbá,
Não cantam como as do Salto, não.
Da casa onde eu morava,
O murmurar da cachoeira
De noite eu bem escutava,
A espadanar na pedreira.
O Corumbá leva mensagem
Lá do sertão para o mar;
Esta singela imagem
Quero aos leitores deixar.
Bernardo Elis, escritor,
Em Corumbá nascido,
Com maior brilho foi autor
De um dito parecido.
Aos Imortais na Academia,
Relatou no discurso
De posse, com maestria,
Do Corumbá o percurso:
Desde a sua nascente,
Na Serra dos Pirineus,
Até o Salto mais à frente,
Descrevendo aos pares seus.
O Corumbá, outrora piscoso
Já foi do Salto na região:
Dourado era o mais vistoso,
Dos peixes que havia então.
Uma elevada barragem,
Mais abaixo construída,
Dos montes entre a passagem,
Impediu-lhes a subida.
Já o rio margeando,
Muito buriti havia,
Uma palmeira espalmada,
Que altaneira se via.
Corumbá é o nome também
Da cidade que fica a jusante,
Na vertente de um morro além,
Duas léguas e meia adiante.
A propósito, o Salto jaz
Nos limites do município
De Corumbá-de-Goiás,
Diga-se logo em princípio.
A sede da Fazenda
Lá do Salto a Fazenda
Tinha uma sede senhorial,
Uma elegante vivenda,
De estilo colonial.
Ornada de formosas beiradas,
Com flor de lis rematadas,
E vidraças articuladas,
Que se abriam emparelhadas.
À Diocese pertencente,
Recebida por doação,
De repouso como ambiente,
Ao clero servia então.
Foi o fazendeiro João Paulino
Da doação o autor,
Um cavalheiro grã-fino,
Homem de grande valor.
Era Dom Emanuel
O arcebispo de Goiás,
Louvado em gente fiel,
De meu pai mandou atrás.
Dom Emanuel, assim dizem,
Queria alguém audacioso,
De italiana origem,
Honesto e
e operoso.
De ascendência italiana,
Capixaba de nascença,
Caiu meu pai na diocesana
Do prelado preferência.
Do Padre Trindade, aliás,
Deputado Federal,
Pelo Estado de Goiás,
Era amigo pessoal.
Tal relação foi importante
Para a vida futura:
A amizade constante
Cria uma base segura.
Pela autoridade eclesial
Foi meu pai então convidado
A tomar conta do local,
Para tanto preparado.
O convite adrede veio -
Uma oportunidade de truz -
Com pouca terra para semeio,
Surgiu como uma luz.
Com ele, Domingos Bimbato,
Morador de Cachoeiro,
Dom Emanuel fez um trato,
Em que não entrava dinheiro:
Salário não recebia,
Mas o que colhia e criava,
Tudo a papai pertencia,
E desse modo se pagava.
Saindo de Cachoeiro
Eu sou, modéstia à parte,
Da cidade de Cachoeiro
De Itapemirim, destarte,
Vou brincando galhofeiro.
Assim gostam de brincar,
Com certo engenho e arte,
As pessoas do lugar,
De tal fazendo estandarte.
Eu nasci na zona rural,
O ano inteiro cultivada,
De viçoso cafezal,
Pela brava italianada.
De lá eu pequeno saí,
Para o sertão de Goiás -
Um lugar distante daqui,
Que os anos não trazem mais.
Com meus pais e minha irmã
Dalva, criança de colo,
Partimos então de manhã,
Com a matula a tiracolo.
De Cachoeiro saímos,
Fazendo a viagem de trem,
Dali, assim, nós partimos,
Com nossa honra também.
Andamos por longes terras,
Em nossa longa jornada,
Cruzamos por várias serras
E planícies na estrada.
A Anápolis, em hora
Matutina, chegamos,
Donde fomos embora,
De carro de boi e ficamos,
Numa fazenda, parando,
De Corumbá na estrada,
Ali então demorando
Alguns dias de estada.
Era Clemente Altoé,
Quem de tais terras cuidava,
Preposto de Dom Emanuel,
Que com este versava.
De papai conhecido,
Clemente era também
Em Cachoeiro nascido,
Operoso como ninguém.
De carro de boi novamente,
A Corumbá nós chegamos -
Uma cidade envolvente -
Onde alguns dias ficamos.
É uma cidade histórica;
Em mil setecentos e trinta,
Fundada de forma pictórica,
Com muito barro e um ror tinta,
Pelos bandeirantes
À procura de ouro,
Hoje, como era antes,
Reservatório de tesouro.
A cidade inda conserva,
Em seus casarões, a colonial
Aparência e preserva
A tradição cultural.
Era Padre Guilherme, o vigário
Da cidade, mui querido,
Do arcebispo emissário,
Na sotaina investido.
Ora, de Dom Emanuel
E do Padre Trindade
Dos quais amigo fiel,
Papai, com prioridade,
A crédito então comprou
Mantimento e semente,
Pois, a Corumbá ele chegou,
Sem dinheiro, insolvente;
Mais utensílios de cozinha
Ferramentas para lavoura
E tudo o que mais convinha,
Como pano de costura e tesoura.
Deus foi servido ajudar,
Pois, só depois da colheita,
Comprou para então pagar,
Que assim faz a gente direita.
Entre os comerciantes,
Edmir, Inácio e Felim
Foram dos negociantes
Que lhe venderam assim.
E cumpre mencionar
Juquinha Curado,
Entre as pessoas do lugar,
Que lhe venderam fiado.
Canto dos ilustres varões
A sua benevolência,
Que, em várias ocasiões,
Provaram a munificência.
Em nome, pois, de meu pai
E de meu próprio também,
Esta mensagem aqui vai
De quem agradece a alguém.
Até do Salto à Fazenda,
De carro de boi outra vez,
Segundo a nossa agenda,
Mostramos intrepidez.
Mal me lembro da viagem,
Pois nem dois anos eu tinha,
Só uma pálida imagem
Ficou na memória minha.
Doces recordações
Numa casa arejada,
Junto à sede construída,
Fixamos nossa morada,
E ali vivemos a vida.
Com meus pais e minha irmãzinha,
Sem nenhum vizinho por perto,
Vivi como a ave que aninha,
Na solitude do deserto.
Homero, o poeta, imitando,
A Aurora com seus róseos dedos,
O sol já vai radiando,
Sorrindo nos arvoredos.
Também vistoso e luzido,
Era o anoitecer -
E o céu de estrela esparzido -
Que esplêndido era de ver!
Outrossim, na alvorada,
Daquele aprazível lugar,
Alegre, a passarada
Começava feliz a cantar.
De Mindinha Villa-Lobos,
Vou esta letra entoar,
Que tem os suaves arroubos
Da madrugada a raiar:
"Lá no céu,
A estrela d'alva anuncia
O nascer
De mais um formoso dia."
"O galo canta bem cedinho,
Despertando a caboclada,
A passarada deixa o ninho,
E vem saudar a alvorada."
Um rego ora captava
No Corumbá água cristalina,
Que a Fazenda banhava,
Como se fora da mina;
Rente à minha morada,
De lírio branco margeado,
Perfumoso na valada,
Que eu aspirava deliciado.
Enquanto mamãe lavava
Roupa e cantava, eu ouvia,
No rego eu me banhava,
E encantado me sentia.
Visitas ilustres
Mais de uma vez ali veio
O arcebispo, Dom Emanuel,
Em seu fino Lincoln, a passeio,
E com seu típico anel.
Doutra feita, foi Dom Abel,
Então bispo de Goiás,
De carro, e um padre fiel,
Que o dia ali passou, aliás.
Geraldo Campos, o prefeito,
De Corumbá, pois, então -
Um cidadão mui direito -
Vinha em seu caminhão.
Também ali estiveram
Junto com o Padre Cirilo,
Mizita e Goiany, que irmãs eram,
Vestidas em faceiro estilo.
Cirilo, em Goiânia morador,
Mizita, a estimada diretora,
Da escola, com grã valor,
De Corumbá, era a flora.
Ambas de lá professoras,
Foram com o Padre Cirilo
Passear no rio por horas,
Onde cantava o grilo.
Recebíamos a visita
De Clemente Altoé -
Que vinha em sua égua catita -
E nosso amigo de fé.
Clemente depois se tornou
De crisma o meu padrinho,
Por isso, então me estimou,
Sempre com muito carinho.
Para as ilustres visitas,
Mamãe galinha preparava
Com polenta, que, das ditas
Pessoas, cada qual saboreava.
Nosso mais próximo vizinho
Era o fazendeiro Silvestre,
De Corumbá no caminho,
Em sua morada campestre.
Ali havia um monjolo,
Movido pela água dum rego,
Batendo, quebrando o miolo
Dos grãos, no ledo sossego.
Silvestre e Babita, a esposa,
Atentos nos recebia,
Ela, mui gentil e bondosa,
Quitute nos oferecia.
Mais adiante ficava
A fazenda de Aquilais,
Que uma bela boiada criava,
Naquela região de Goiás.
Na fazenda de Aquilais havia
De jabuticaba uma floresta,
E muita gente lá ia
As frutas chupar - uma festa!
Havia jabuticaba,
Mas tanta, que eu chupava
No pé - um nunca se acaba -
Até que me fartava.
No caminho acedente,
Margeado de muita flor,
Ao longe, na vertente
Da Serra do Tombador,
Se viam formosos regatos -
Um vistoso panorama -
Descendo, pelos verdes matos
Da Serra, por entre a rama.
Na crista da Serra se via,
Altaneiro e isolado,
Um buriti, que sobressaía,
"Buriti Sozinho", chamado.
Pinduca, ao norte, era o sitiante
Mais próximo da Fazenda,
Cerca de uma légua distante,
Popular dono de uma venda.
Outras lembranças
Havia muita goiabeira,
Também mangueiras havia,
Limoeiro e laranjeira,
Na Fazenda bravia.
Na quinta, de todo lado,
Ouvia-se, de cá e de lá,
Do pas'so preto o trinado
E o canto do sabiá.
A cercania da Fazenda
Do Salto do Corumbá
Era outrossim a vivenda
Do garboso lobo guará,
Que, em bando, à noite uivava,
De minha casa junto ao muro,
E eu, com medo, escutava
O ulular no escuro.
Luz elétrica não havia,
Naquele distante sertão:
Quando o sol se escondia,
Era uma escuridão.
Lobisomem e outras histórias
Do lobisomem se dizia
Que, em noite de lua cheia,
Às vezes aparecia -
Um bicho de cara mui feia.
Algum visitante jurava
Ter visto assombração,
Que os passantes assustava,
E causava estupefação.
Às vezes era a folhagem,
Pelo vento revolvida,
A origem, então, da miragem
De coisas da outra vida.
De casas mal-assombradas
Também se ouvia falar,
Principalmente em moradas,
Retiradas do lugar.
Era voz comum no lugar
Que índios por perto havia:
De a petizada assustar,
Que, sozinho, longe não ia.
Pirilampos
Ao anoitecer, pelos campos,
Que ao longe se estendiam,
Se viam os pirilampos,
Que em nuvens entreluziam.
Canto o poeta dos lares,
"O Condoreiro" baiano,
O primus
inter pares,
O dos vates soberano:
"E, em lindos cardumes,
Sutis vagalumes
Acendem os lumes
Pro baile na flor."
"E então nas arcadas
Das petlas doiradas,
Os grilos em festa
Começam a orquestra
Febris a tocar..."
A companhia de estradas
Vênus, dos eleitos protetora,
Zelosa, nos favorecia,
Enviando, em boa hora,
De estradas uma companhia.
Quinhentos sóis já eram passados,
Quando ali acampou,
E então praqueles lados
Uma empresa assentou:
Construir uma estrada,
Que até ao norte do Estado,
Ligasse, na empreitada,
Anápolis, pelo cerrado;
E cortasse a serrania,
No audacioso projeto,
Rompendo a mata bravia,
E os campos, cruzando reto.
Com pás, enxadões e enxadas,
Carroças pra remover a terra,
Por uma tropa de mulas puxadas,
E picaretas, cortando a serra;
Às vezes, a dinamite,
Estrondosa, explodia,
Quebrando o arrebite,
Da angulosa pedraria.
O boró
O pessoal da companhia
Era pago com o boró,
Cartão que dinheiro valia,
Fiado no crédito, só.
O boró também circulava
Na cidade como dinheiro,
Pois então escasseava
Na praça o novel cruzeiro.
Não só este escasseava,
Como já não se imprimia
O mil réis, que também faltava,
E a patuleia, esta sofria.
Ainda a companhia
A companhia fez seu escritório
Lá na sede da Fazenda,
Onde instalou o diretório,
E fazia sua agenda.
Era Mário, jovem engenheiro,
Quem chefiava a companhia
E o pessoal empreiteiro
Da empresa que ali construía.
De manhã, bem cedinho,
Na bica eu o encontrava,
Quando ele estava sozinho,
Enquanto o rosto lavava.
Uma vitrola, movida
A manivela, entoava
Música ali ouvida;
Entre outras, se escutava:
"Sereno, sereno cai,
Sereno deixou cair,
Sereno da madrugada
Não deixou meu bem dormir."
Certa vez, eu presenciei
Um boi indefeso abater
E então, pasmo, vivenciei
O sangue da goela a correr.
A gente, em silêncio, assistia
À cena cruenta, e o animal,
Sem tugir nem mugir, nem gemia,
Até que dobrou o espinhal.
Com o pessoal ali acampado,
Mamãe, com base na troca,
Aprendeu um bom bocado
De cuscuz, a beiju e tapioca.
Polenta eu também comia,
E carne em porco na banha,
O leite de cabra eu bebia -
Tudo saúde que se ganha.
No terreiro da doce morada,
Uma engenhoca havia,
Onde da cana imprensada,
Garapa então se bebia.
Papai capado matava,
Linguiça e chouriço fazia -
O porco bem dissecava -
Mostrando-lhe a anatomia.
Do toucinho, banha fazia,
Que em latas guardava,
E a carne, que sempre havia,
Assim também conservava.
Não havendo geladeira,
Nem sequer, energia
Elétrica, era, pois, a maneira
De manter a caloria.
Já, então, a carne de gado,
Num arame, salgada,
Permanecia um bocado
Ao sol, assim conservada.
Da carne de porco a linguiça,
Também após temperada,
Ao sol secava inteiriça,
E assaz apimentada.
A noite se clareava,
À luz de um lampião,
Que a casa iluminava,
Quando era a ocasião.
O poente, o sol refletindo,
Nas pedras da montanha,
Parecia uma onça rugindo:
Coisa realmente estranha.
A companhia dois anos ficou,
Na Fazenda acampada,
E muita saudade deixou
De sua alegre estada.
Primeiras lições
De meu pai tomando lições,
Comecei a ler e a escrever,
E as quatro operações
Aprendi também a fazer.
Antes de para a escola entrar,
Isso em casa aprendi,
Pois sempre gostei de estudar,
Às vezes com frenesi.
Mudando para a cidade
Vendendo milho e capado,
Arroz e feijão tropeiro
Ao pessoal ali acampado,
Meu pai juntou dinheiro:
Dois contos de réis, pra comprar,
Na cidade de Corumbá,
Uma casa para morar,
Quando tivesse de mudar.
Pois eu ia chegando à idade,
De para a escola entrar,
E uma boa casa na cidade
Passamos a habitar.
Na Fazenda então ficamos
Por cinco anos morando,
Até que, pois, nos mudamos,
A nova casa habitando.
Os bichos da Fazenda
Meu cão, Vigilante chamado,
Em minhas pernas se enroscava,
Com isso querendo agrado,
E eu seu dorso afagava.
De nome Xingu, o meu gato,
Com ele eu às vezes brincava,
Eu fazia gato e sapato,
E Xingu nem sempre gostava.
Certa vez puxei o seu rabo,
E o gato minha perna dentou:
Casou-me um ferimento brabo,
E mamãe com tição queimou.
Foi a Divina Providência,
Que sua mão guiou:
Eu não tinha consciência
Do mal que me ameaçou.
Os porcos daquela morada
Viviam soltos, uma beleza,
Que primorosa porcada,
A mais bela da redondeza!
Amiúde a manada ia
Espojar-se num pantanal,
Que na vizinhança havia,
Perto de um mangueiral.
Depois que chegou a companhia,
Toda espécie de porcino -
O seu grunhido se ouvia -
Ficou presa no esterquilino.
Disparada a cavalo
Eu montava um cavalo baio,
Chamado Douradinho,
Aprendi com algum ensaio,
Ele era bastante mansinho.
Papai uma besta cavalgava,
Chamada Capetinha,
Era arisca e pulava,
Com quem prática não tinha.
Aos cinco anos de idade,
Montado no Douradinho,
Ia com meu pai à cidade,
Ele, na mula, a caminho.
Certa vez, meu cavalo,
De Corumbá na estrada,
Disparou assim de estalo,
Galopando em retirada.
As rédeas, firme, segurei,
No arreio me firmei, destemido,
E o animal eu parei,
Ele, por uma fêmea atraído,
Papai logo me alcançou,
A Capetinha trotando;
A disparada não me assustou,
E prossegui cavalgando.
A roça do Borá
Montado num burrico eu ia
Até à roça do Borá,
Nome do corgo que havia,
Banhando o terreno por lá.
Eu levava num embornal
O almoço da jornada,
Sendo o prato principal,
Carne seca e feijoada.
Papai a um cigarro acendia,
De palha, e fumo picado,
Que no tição acendia,
E o toco ficava guardado,
Por sobre a orelha, apagado,
Para que o acendesse,
Outra vez esbraseado,
Quando lhe apetecesse.
A caminho da lavoura eu via,
O doce regato margeando,
Caju, ingá, melancia,
E borboletas em bando.
Com dois jacás o burrinho
Já vergando voltava,
De casa pelo caminho,
Até que à morada chegava.
Do córrego no arcano,
Em profusão havia rosas,
Por isso, de um parnasiano
Lembro estas letras mimosas:
"Sonho com jambos e rosas,
Com as madrugadas formosas,
Deste formoso sertão:
Meu sonho é como a canoa,
Que voa, que voa, e voa
Nas águas do ribeirão."
Primeiras canções
Enquanto meu berço embalava,
Suaves canções de ninar
Mamãe com ternura cantava,
E assim meu sono a velar.
A minha mãezinha ouvindo,
Comecei a imitar,
E suas canções repetindo,
Logo aprendi a cantar.
A sua canção preferida -
Vide só, quanta beleza! -
No berço por mim aprendida,
Era "Sonhando com Veneza":
"É Veneza um jardim da Itália,
Belo jardim a beira-mar plantado,
É a glória do povo italiano,
Belo sonho de todo missionado."
"Quisera eu ver Veneza bela,
E gôndolas em noite de luar,
És tu, Veneza, um mundo encantado,
Enfim viver, viver, sonhar."
"Mas neste doce anelo,
Fora um sonho belo,
Contigo a beira-mar,
Viver, viver e amar!
"Mas neste doce anelo,
Fora um sonho belo,
Contigo minha linda flor,
Viver, viver de amor!
Essa tão graciosa canção,
De autoria desconhecida,
Dentro do meu coração,
Guardei por toda a vida.
De bom ouvido era dotada,
E de voz celestial,
Aptidão abençoada,
De origem divinal.
Pois todo dom de Deus provém,
Que o confere às criaturas,
Para glória sua no Além,
Lá do céu nas alturas.
Esta dádiva eu herdei:
O dom também de cantar,
E, se hoje cantar eu sei,
Devo a mamãe escutar.
Epílogo
A Fazenda foi decaindo,
Depois que papai se mudou;
Foi sumindo, sumindo,
E nada mais restou.
Aqui termina a história
Da Fazenda do Salto, então,
Para registrar-lhe a memória
Dos leitores na ocasião.
Na cidade de Corumbá,
Foi onde o primário eu cursei,
E muitos amigos fiz lá,
Na escola onde estudei.
De nascimento, pois bem,
Sou cidadão cachoeirense,
De criação sou, porém,
Com orgulho, corumbaense.
São Paulo, setembro de 2015
Mario Bimbato, mestre em Direito pela Universidade de Yale, é escritor, poeta e cantor.
mariobimbato@gmail.com
A aurora da minha vida
5.6.15
Mário Bimbato
Prólogo
Canta, ó Musa, a aurora
Da minha vida na doce plaga,
Cantando aqui e agora,
Da infância a minha saga.
A minha infância doirada,
Tem um quê de epopeia,
De uma vida encantada,
E a magia de uma deia.
A Fazenda do Salto
Foi lá na Fazenda do Salto,
Num vale coberto de flor,
De Goiás no belo Planalto,
Junto à Serra do Tombador:
Que a infância eu vivi,
Numa área bucólica e serena,
Que fica bem longe daqui,
Onde sopra uma aura amena.
Esse nome a fazenda tinha,
Pois do Salto do Corumbá
Ficava bastante vizinha,
Cerca de mil passos de lá.
O lugar era um paraíso,
Por Deus ali colocado -
Da natureza o sorriso -
Num idílio abençoado.
Andrade parodiando, então,
A Serra do Tombador
Não tinha esse nome, não:
Era Serra do Roncador.
Ali tombou carro e caminhão
Mas tanto, que do Tombador
Se chamou, desde então,
Do Tombador, e assim ficou.
Na Serra do Tombador,
Com vista para o Salto,
Da direção, com o vetor,
Sopra o vento rijo do alto.
O rio Corumbá
O Corumbá tem nascente
Dos Pireneus lá na Serra,
E vai em sua corrente,
Para o sul serpeando a terra.
A quatro léguas do lugar
Onde nasce, um belo salto
Vai majestoso formar,
De um penhasco bem alto.
É o Salto do Corumbá,
Que borbota sobranceiro,
Agitando as águas lá,
Onde cai num desfiladeiro.
Gracioso é salto que se vê,
Retumbante no Corumbá,
As cascatas que cá você
Vê, não cantam como lá.
Da casa onde eu morava,
O murmurar da cachoeira
De noite eu bem escutava,
A espadanar na pedreira.
O Corumbá leva mensagem
Do vasto sertão para o mar:
Essa singela imagem
Quero a vocês enviar.
Bernardo Élis, escritor,
Em Corumbá nascido,
Outrossim foi autor
De um dito parecido.
Aos Imortais na Academia,
Relatou no discurso
De posse, com maestria
Do Corumbá o percurso:
Desde a sua nascente,
Na Serra dos Pirineus,
Até o Salto mais à frente,
Descrevendo aos pares seus.
Corumbá é o nome também
Da cidade que fica a jusante,
Na quebrada de um morro, além,
Duas léguas e meia adiante.
A sede da Fazenda
Lá do Salto a Fazenda
Tinha uma sede senhorial,
Uma elegante vivenda,
De estilo colonial.
À Diocese pertencente,
Ao clero serviu outrora
De repouso como ambiente,
Que as energias revigora.
Era Dom Emanuel
O arcebispo de Goiás,
Querendo pessoa fiel,
De meu pai mandou atrás.
Dom Emanuel, como dizem,
Queria alguém operoso
De italiana origem,
Honesto e audacioso.
De italiana ascendência,
De nascença capixaba,
Caiu papai na preferência
Do prelado pra Terra da Goiaba:
Havia muita goiabeira,
No quintal daquela morada,
Também muita mangabeira,
Na Terra da Goiaba chamada.
Do Padre Trindade, aliás,
Deputado Federal
Pelo Estado de Goiás,
Era amigo incondicional.
Tal relação foi importante
Para a vida futura:
A amizade constante
Engendra uma base segura.
Pelo Padre Trindade indicado
À autoridade eclesial,
Meu pai foi então convidado
A tomar conta do local.
O convite adrede veio:
Uma ocasião de truz,
Com pouca terra para o semeio,
Surgiu como uma luz.
Com ele, Domingos Bimbato,
Morador de Cachoeiro,
Dom Emanuel fez um trato,
Em que não entrava dinheiro:
Salário não recebia,
Mas o que colhia e criava
Tudo a papai pertencia,
E desse modo se pagava.
Saindo de Cachoeiro
Eu sou, modéstia à parte,
Da cidade de Cachoeiro
De Itapemirim, destarte,
Vou brincando galhofeiro.
Assim gostam de brincar,
Com certo engenho e arte,
As pessoas do lugar,
De tal fazendo estandarte.
Eu nasci na zona rural,
O ano inteiro cultivada,
De viçoso cafezal,
Pela brava italianada.
De lá eu pequeno saí,
Para o sertão de Goiás,
Um lugar bem longe daqui,
Que os idos não trazem mais.
Com papai, mamãe e minha
Irmã, então ainda de colo,
Partimos de manhãzinha,
Coa matula a tiracolo.
De Cachoeiro saímos,
Fazendo a viagem de trem,
Dali, então, nós partimos,
Com a nossa honra também.
Andando por longes terras,
Em nossa longa jornada,
Cruzamos várias serras
E planícies na estrada.
Depois, a Anápolis em hora
Matutina chegamos,
Donde fomos embora,
De carro de boi e paramos:
Numa fazenda ficamos,
De Corumbá na estrada,
E onde nos demoramos
Alguns dias de estada.
Era Clemente Altoé
Quem da propriedade cuidava,
Preposto de Dom Emanuel,
Que com ele versava.
De papai conhecido,
Clemente era também
Em Cachoeiro nascido,
Operoso como ninguém.
Em Corumbá-de-Goiás
De carro de boi novamente,
A Corumbá nós cegamos -
Uma cidade envolvente -
Onde alguns dias ficamos.
Em Corumbá, com alegria,
Papai e mamãe conheceram
Padre Guilherme e Maria,
Sua mãe, e amizade fizeram.
Padre Guilherme, o vigário,
Na cidade era mui querido,
Do arcebispo emissário,
Ali então estabelecido.
Encontraram, com agrado,
Pessoas de alto coturno,
Como Edmir e Olga Curado,
Gente de convívio diuturno.
Conheceram igualmente
André e Edmee Curado,
Que os receberam de boa mente -
André, ex-prefeito renomado.
Também a Felinho Curado,
Dito o Coronel Felim,
Dono de um empório abastado,
Amável e querido, enfim.
E cumpre mencionar
Geraldo Campos, o prefeito
Do assinalado lugar,
Por várias vezes eleito.
Ediberto e Carmelina,
Mais tarde vizinhos então,
Com os quais a vivência ensina
A estabelecer união.
Conheceram, outrossim,
Chico e Maria Miranda,
Amigos e gente afim,
Com quem a gente sempre anda.
José Silvestre e Babita,
Nossos vizinhos futuros,
Cuja amizade habita
Só os corações puros.
Mais tarde também conheci
As pessoas mencionadas,
E ademais algumas ali
Me foram bastante prezadas.
Fiz igualmente amizade
Com Zé e João Miranda,
Colegas daquela cidade,
Muitas vezes na sua varanda.
E Alípio, trombonista da banda,
Sebastiana e Maria José,
Filhos de Chico Miranda,
Em quem depositei fé.
Conheci também a Ramon
De Edmir e Olga Curado,
Bem assim Ari e Odilon,
De outros colegas, ao lado.
Ramon, que diácono se ordenou,
Mais Ari, Odilon e a mim
O Padre Carlos convidou
Para ser coroinhas, bem sim.
Peço desculpa aos de fora,
Por tantos nomes citar,
Mas, por justiça, agora,
Cumpre a mim mencionar.
ntar.
Tendo no Padre Trindade
Excelente referência,
E fiado em sua amizade,
Papai, já com antecedência:
A crédito então comprou
Mantimento e semente,
Pois a Corumbá aportou
Sem dinheiro, insolvente.
Mais utensílios de cozinha
Ferramentas para lavoura
E tudo o que mais convinha,
Como Biotônico Fontoura.
Deus foi servido ajudar,
Pois só depois da colheita,
Comprou para então pagar,
Apertando a mão direita.
Ademais bem generosos
Foram os comerciantes,
Felim e Edmir, entre os mais vultosos
Da cidade negociantes.
Canto, pois, dos ilustres varões
De Corumbá a munificência,
Que, em diversas ocasiões,
Provaram sua beneficência.
Em nome, pois, de meu pai,
Segue então esta mensagem,
Que louvando aqui vai
Dos homens bons a coragem.
Até do Salto à Fazenda,
De carro de boi outra vez,
Segundo a nossa agenda,
Mostramos a intrepidez.
Mal me lembro da viagem,
Pois nem dois anos eu tinha,
Só uma pálida imagem
Ficou na memória minha.
Numa casa arejada,
Junto à sede construída,
Fixamos nossa morada,
E ali vivemos a vida.
Com meus pais e minha irmãzinha,
Sem nenhum vizinho por perto,
Vivi como a ave que aninha
Na solitude do deserto.
Homero, o poeta, imitando,
A Aurora com seus róseos dedos,
O sol já vai radiando,
E sorri nos arvoredos.
Também vistoso e luzido,
Era ademais o alvorecer,
E o céu de estrelas esparzido -
Que formoso amanhecer!
Já na alvorada,
Do aprazível lugar,
Alegre, a passarada
Começa o dia a cantar.
De Mindinha Villa-Lobos,
Vou estes versos cantar,
Que tem os suaves arroubos
Da madrugada a raiar:
"Lá no céu,
A estrela d'alva anuncia
O nascer
De mais um formoso dia."
"O galo canta bem cedinho,
Despertando a caboclada,
A passarada deixa o ninho,
E vem saudar a alvorada."
A companhia de estradas
Vênus, dos eleitos protetora,
Zelosa, nos favorecia,
Enviando, em boa hora,
De estradas uma companhia.
Quase mil sóis já eram passados,
Quando ali acampou,
E a fazer praqueles lados
Uma empresa começou:
A construir uma estrada,
Que até ao norte do Estado
Ligasse Anápolis na empreitada,
Pelo terreno acidentado:
Cortando a serrania,
Em seu trajeto audaz,
Rompendo a mata bravia,
E o serrado cruzando assaz.
O pessoal da companhia
Era pago com o boró,
Cartão que dinheiro valia,
Fiado no crédito, só.
O boró também circulava
Na cidade como dinheiro,
Pois então escasseava
Na praça o novel cruzeiro:
Não só este escasseava,
Como já não se imprimia
O mil réis, que também faltava,
E o povo, coitado, sofria.
Vendendo feijão e capado,
Rapadura e mais animal,
Ao pessoal ali acampado,
Meu pai juntou capital:
Dois contos de réis pra comprar,
Na cidade De Corumbá,
Uma casa para morar,
Quando chegasse o dia, quiçá.
Pois à idade eu ia chegando
De para a escola entrar,
E uma boa casa ocupando,
Passamos a habitar.
Doces recordações
Havia muita goiabeira,
Na Terra da Goiaba,
Limoeiro e laranjeira,
Naquela região braba.
Nos fundos da propriedade,
Cantar se ouvia já
Da graúna a habilidade,
Bem como o sabiá.
A cercania da Fazenda
Do Salto do Corumbá
Era outrossim a vivenda
Do garboso lobo guará:
Que em bando à noite uivava,
De minha casa junto ao muro,
E eu com medo escutava
A alcateia no escuro.
Ao anoitecer, pelos campos,
Que ao longe se estendiam,
Se viam os pirilampos,
Que em nuvens entreluziam.
Chamo o poeta dos lares,
"O Condoreiro" baiano,
O primus
inter pares,
O dos vates soberano:
"E, em lindos cardumes,
Sutis vagalumes
Acendem os lumes
Pro baile na flor."
"E então nas arcadas
Das petlas doiradas,
Os grilos em festa
Começam a orquesta
Febris a tocar..."
Era voz comum no lugar
Que índios por perto havia:
De a petizada assustar,
Que sozinho ninguém lá ia.
Do poente o sol refletindo,
Nas pedras da montanha,
Parecia uma onça rugindo,
Uma coisa realmente estranha.
De meu pai tomando lições,
Comecei a ler e a escrever,
E as quatro operações
Aprendi também a fazer.
Antes de pra escola entrar,
Isso em casa aprendi,
Pois sempre gostei de estudar,
Às vezes com frenesi.
Os bichos da Fazenda
Meu cão, Vigilante chamado,
Em minhas pernas se enroscava,
Com isso querendo agrado,
E eu seu dorso afagava.
De nome Xingu, o meu gato,
Com ele eu às vezes brincava,
Eu fazia gato e sapato,
E Xingu nem sempre gostava.
Certa vez puxei o seu rabo,
E o gato minha perna dentou:
Casou-me um ferimento brabo,
E mamãe com tição queimou.
Isso foi providencial,
Pois eu por certo escapei
De uma infecção talvez fatal,
E de dor eu muito gritei.
Foi a Divina Providência,
Que nestora sua mão guiou:
Eu não tinha consciência
Do perigo que me ameaçou.
Os porcos daquela morada
Viviam soltos, uma beleza,
Que primorosa porcada,
A mais bela da redondeza!
Amiúde a manada ia
Espojar-se num pantanal,
Que na vizinhança havia,
Perto de um mangueiral.
Eu montava um cavalo baio,
Que se chamava Douradinho,
Aprendi com algum ensaio,
Ele era bem mansinho.
Papai uma mula cavalgava,
Que não era nada mansinha,
Era arisca, e pulava
Com quem muito treino não tinha.
Aos cinco anos de idade,
Montado no Douradinho,
Ia com meu pai à cidade,
Ele, na mula a caminho.
Certa vez o meu cavalo,
De Corumbá na estrada,
Disparou assim de estalo,
Galopando de atirada.
Por uma fêmea atraído,
As rédeas firme segurei,
E me atraquei destemido,
Até que a montaria parei.
Papai logo me alcançou,
No encalço, a besta trotando;
A disparada não me assustou,
E eu prossegui cavalgando.
A roça do Borá
Montado num burrico eu ia
Até à roça do Borá,
Nome do corgo que havia,
Banhando o terreno por lá.
Trazendo num embornal
A papai o almoço eu vinha,
Sendo o prato principal
Carne seca com farinha.
A caminho da lavoura eu via,
O doce regato margeando,
Caju, ingá, melancia,
E borboletas em bando.
Com dois jacás o burrinho
Já carregado voltava
De casa pelo caminho,
Até que à morada chegava.
Do córrego no arcano,
Em profusão havia rosas,
Por isso, de um parnasiano
Lembro estas letras mimosas:
"Sonho com jambos e rosas,
Com as madrugadas formosas,
Deste formoso sertão:
Meu sonho é como a canoa,
Que voa, que voa e voa
Nas águas do ribeirão."
Primeiras canções
Enquanto meu berço embalava,
Suaves canções de ninar
Mamãe com ternura cantava,
Em versos a declinar.
A minha mãezinha ouvindo,
Comecei a imitar
E suas canções repetindo,
Logo aprendi a cantar.
A sua canção preferida,
Que doçura, que beleza!
No berço por mim aprendida,
Era "Sonhando com Veneza":
"É Veneza um jardim da Itália,
Belo jardim a beira-mar plantado,
É a glória do povo italiano,
Belo sonho de todo missionado."
"Quisera eu ver Veneza bela,
E gôndolas em noite de luar,
És tu, Veneza, um mundo encantado,
Enfim viver, viver, sonhar."
"Mas neste doce anelo,
Fora um sonho belo,
Contigo a beira-mar,
Viver, viver e amar!"
"Mas neste doce anelo,
Fora um sonho belo,
Contigo minha linda flor,
Viver, viver de amor!"
De autoria desconhecida,
Essa tão graciosa canção
Guardei por toda a vida,
Dentro do meu coração.
De bom ouvido era dotada,
E de voz celestial,
Aptidão abençoada,
De origem divinal.
Pois todo dom de Deus provém,
Que o confere às criaturas,
Para glória sua no Além,
Lá do céu nas alturas.
Esta dádiva eu herdei:
O dom para bem cantar,
E, se hoje cantar eu sei,
Devo a mamãe a escutar.
Epílogo
Na cidade de Corumbá,
Foi onde o primário eu cursei,
E vários amigos fiz lá,
Na escola onde estudei.
De nascimento, pois bem,
Sou cidadão cachoeirense,
De coração sou, porém,
Com orgulho, corumbaense.
São Paulo, junho de 2015
Mário Bimbato, mestre em Direito pela
Universidade de Yale (1973), é escritor, poeta e cantor.
Contato: mariobimbato@gmail.com
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Minha infância no Salto
A Fazenda do Salto
Foi lá na Fazenda do Salto,
Num vale coberto de flor,
De Goiás no belo planalto,
Junto à Serra do Tombador,
Que minha infância eu vivi,
Numa área bucólica e serena,
Que fica bem longe daqui,
Arejada por um'aura amena.
Esse nome a Fazenda tinha,
Pois do Salto do Corumbá,
Ficava bastante vizinha,
Cerca de mil passos de lá.
Da casa onde eu morava,
O murmurar da cachoeira
De noite eu bem escutava,
A espadanar na pedreira.
O rio Corumbá
O rio Corumbá tem nascente
Dos Pireneus bem lá na Serra,
Ir, na sua formosa corrente,
Vai para o sul cortando a terra.
A quatro léguas do lugar
Onde nasce, um belo salto
Vai impávido então formar,
De um despenhadeiro do alto.
É o Salto do Corumbá,
Que despenca altaneiro,
Agitando as águas lá,
Onde cai num desfiladeiro.
Corumbá é como também
Se chama a cidade banhada
Pelo rio, mais além,
Do mesmo nome formada.
O Salto do Corumbá jaz
Nos limites do município
De Corumbá-de-Goiás,
Diga-se logo em princípio.
Primorosa é a queda d' água,
Situada no Corumbá,
Que ali soberba deságua:
Lugar mais belo cá não há.
O Corumbá leva mensagem
Do sertão lá para o mar,
Alguém disse com a vantagem
De quem bem sabia falar.
Bernardo Élis, escritor
E acadêmico, nascido
Em Corumbá, foi autor
Em discurso proferido,
De posse na Academia
De Letras Brasileira,
De elegante alegoria
Que honrava sua cadeira.
Lá do rio Corumbá,
Descrevia o curso d'água,
Desde a nascente acolá,
Até o ponto onde deságua.
De Cachoeiro para Goiás
A sede daquela fazenda
Era uma casa senhorial-
Uma elegante vivenda -
Em estilo colonial.
À Diocese pertencente,
Aos padres serviu outrora
De repouso como ambiente,
Que a saúde revigora.
Era Dom Emanuel,
O arcebispo de Goiás.
Querendo pessoa fiel,
De meu pai mandou atrás.
De italiana ascendência,
De nascença capixaba,
Caiu papai na preferência
Daquele p'ra tarefa braba.
Por outra pessoa indicado
À autoridade eclesial,
Foi meu pai então convidado
A tomar conta do local.
Com ele, Domingos Bimbato,
Morador de Cachoeiro,
Dom Emanuel fez um trato,
Em que não entrava dinheiro:
Salário não recebia,
Mas o que colhia e criava
Tudo a papai pertencia,
E desse modo se pagava.
Numa casa arejada,
Junto à sede construída,
Fixamos a nossa morada,
E ali nós vivemos a vida.
Com meus pais e minha irmãzinha,
Sem nenhum vizinho por perto,
Ali vivi como a ave que aninha
Na solitude do deserto.
A companhia de estradas
Perto de casa acampou,
Dois anos depois, mais ou menos,
Uma empresa, que assentou
Construir naqueles terrenos
Uma estrada que ligaria
Anápolis ao norte do Estado,
Passando pela pradaria,
Cortando também o cerrado.
O pessoal da companhia,
Era pago com o boró-
Ficha que dinheiro valia -
E depois corria o forró.
O boró também circulava
Na cidade como dinheiro,
Pois então escasseava
Na praça o novel cruzeiro.
Vendendo capado e feijão
Ao pessoal ali acampado,
Meu pai juntou na ocasião
Dinheiro bastante e sobrado,
Para uma boa casa comprar,
Na cidade de Corumbá,
Pois à idade escolar
Eu ia chegando já.
Saindo de Cachoeiro
Eu sou, modéstia à parte,
Da cidade de Cachoeiro
De ltapemirim, destarte
Vou brincando galhofeiro.
Assim gostam de brincar,
Com algum engenho e arte,
As pessoas do lugar,
De tal fazendo estandarte.
Eu nasci de Cachoeiro,
Na zona rural cultivada
De café o ano inteiro,
Pela brava italianada.
De lá eu pequeno saí,
Para o sertão de Goiás -
Um lugar bem longe daqui-
Que os anos não trazem mais.
A aurora da minha vida
A aurora da minha vida
Lá na Fazenda do Salto
Nestes versos é revivida
E ora ca ntada bem a lto.
O quintal daquela morada,
No recanto do Corumbá,
Era do açum preto a pousada,
Nos galhos de um jequitibá.
Os arredores da fazenda
Junto ao Salto do Corumbá
Eram também a vivenda
Do garboso lobo guará,
Que em bando à noite uivava,
De minha casa junto ao muro,
E eu com medo escutava
Aquele ulular no escuro.
Na Fazenda eu admirava
No entardecer o poente,
Que eu sempre contemplava,
Embevecido e contente.
Da propriedade no quintal,
Havia muita goiabeira,
Mais adiante, um mangueiral,
Limoeiro e la ranjeira.
Meu cão, Vigilante chamado,
Em minhas pernas se enroscava,
Com isso querendo agrado,
E eu o seu dorso afagava.
De nome Xingu, o meu gato,
Com ele eu às vezes brincava,
Eu lhe fazia gato e sapato,
E Xingu nem sempre gostava.
Os porcos daquela morada
Viviam soltos, uma beleza,
Que primorosa porcada,
A mais bela da redondeza !
Amiúde a manada ia
Espojar-se num pantanal,
Que na vizinhança havia,
Perto de um mangueiral.
A roça do Borá
Lá na roça meu pai plantava
Milho, arroz, cana e feijão,
E sempre zeloso cuidava,
De toda aquela plantação.
Montado num burrico eu ia,
Até à roça do Borá,
Nome do corgo que havia,
Banhando o terreno por lá.
No caminho da roça eu via,
O doce regato margeando,
Caju, ingá, melancia,
E a passarada voando.
Primeiras canções
A minha mãe escutando,
Cedo comecei a cantar,
E suas canções entoando,
Comecei a mamãe a imitar.
De bela voz era dotada,
E de ouvido musical,
Aptidão abençoada,
De origem divinal,
Pois todo dom provém de Deus,
Que o confere às criaturas,
Segundo critérios seus,
Do empíreo nas alturas.
Primeiras lições
De meu pai tomando lições,
Começava a ler e escrever,
E as quatro operações
Conseguia também fazer.
Antes de para a escola entrar,
lsso eu em casa aprendi,
Pois sempre gostei de estudar,
Às vezes com frenesi.
Epílogo
Na cidade de Corumbá,
Foi onde o primário eu cursei,
E vários amigos fiz lá,
Na escola onde estudei.
De nascimento, pois bem,
Sou cidadão cachoeirense,
De criação eu sou, porém,
Com orgulho, corumbaense.
São Paulo, março de 2015
Mário Bimbato, 73, mestre em Direito pela Universidade de Yale, é
poeta, escritor e cantor.
Contatos:
Mário Bimbato
Tel.: (11) 3104-3192
E-mai|. maiob imbato@g mai L com
Matinadas de DaviDe "Las mañanitas", canção folclórica mexicana;adaptação de Mário Bimbato (2014)
Estas são as matinadas que cantava o rei Davi,E em tua homenagem é que as canto ora a ti.Salve ó Virgem Maria, eis que já amanheceu,Já os passarinhos cantam e a lua se escondeu.Que linda está a manhã em que venho te saudar,Aqui estou eu com todo o gosto e prazer para te cumprimentar.No dia em que tu nasceste nasceram todas as flores,E na beira do caminho se viam de todas as cores.O dia já está claro, já o sol apareceu,Salve ó Virgem Maria, eis que já amanheceu.
Las mañanitas Estas son las mañanitas que cantaba el rey David.
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A FILHA DO DIABO E O CAPITAL
2ª edição
Mário Bimbato
Usura e lucro cessante
Na Idade Média, a cobrança de juro sobre empréstimo de dinheiro, então denominada usura, era condenada pela Igreja, por ser o juro considerado um rendimento ocioso,
isto é, obtido sem trabalho. A título de lucro cessante, contornava-se a proibição, o que traz à baila uma alegoria de Manuel Bernardes, que aqui parafraseamos e comentamos.
O Diabo tinha uma filha, chamada Usura, para a qual procurava casamento. Mas não havia homem de bem que a quisesse, sem embargo de trazer consigo mesma uma fortuna em moedas de ouro.
Disse então: "Já sei o que hei de fazer."
Mudou-lhe o nome, e à Usura chamou Lucro Cessante. Logo surgem pretendentes à porfia (até aqui, conforme Bernardes, 1728, vol. V, p. 375).
Origem e evolução do capital
Casaram Lucro Cessante e o Capital.
Celebraram-se as bodas. Festejaram o Diabo e a mulher do Diabo. Festejou a diabada.
Com o vantajoso casamento, multiplicou-se o Capital. Sob a capa de lucro cessante,
juros simples e compostos passaram a ser cobrados livremente. Como consequência da Reforma Protestante, cai o veto religioso sobre o juro, uma das molas-mestras do nascente capitalismo. Cai também a lei do justo preço, estabelecida pelo Direito Canônico a par da interdição da usura, como limites morais à liberdade contratual. Já florescem as companhias, já proliferam as ações, as debêntures, as notas promissórias. Longe de condenar a busca do lucro e acumulação de riqueza, consideradas, mesmo por Lutero, como "obras do Demônio", os calvinistas veem na prosperidade terrena o "sinal da salvação".
As ideias protestantes sobre economia receberam o apoio de Adam Smith, filósofo e teólogo escocês, em sua obra-prima, "A riqueza das nações", publicada em 1776. Smith
argumenta ser não só legítimo, como também desejável para a sociedade dar aos empresários liberdade na fixação de preços e na busca do lucro.
De sua demonização na Idade Média a sua aprovação na Idade Moderna, foi longo o
caminho percorrido pelo juro e sua fonte, o capital. Contudo, ainda há quem considere a cobrança de juros e o acúmulo de riquezas como "obras do Demônio".
São Paulo, janeiro de 2015
Mário Bimbato, 73, mestre em Direito pela Universidade de Yale, é poeta e escritor.
Contatos:
Tel.: (11) 3104-3192
E-mail: mariobimbato@gmail.com
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Minha infância no Salto
Mário Bimbato
Foi lá na Fazenda do Salto,
Que minha infância vivi,
De Goiás no belo Planalto,
E o bê-á-bá aprendi.
Em Cachoeiro eu nasci,
De Itapemirim chamada,
De onde pequeno saí,
Para do Salto a morada.
Esse nome a fazenda tinha,
Pois do Salto do Corumbá,
Ficava bastante vizinha,
Cerca de mil metros de lá.
Da casa onde eu morava,
O murmurar da cachoeira
De noite eu bem escutava,
A espadanar na pedreira.
Corumbá é o nome de um rio,
Que em Goiás tem nascente,
Também o nome da cidade,
Que ao rio está adjacente.
O Salto do Corumbá jaz
Nos limites do município
De Corumbá-de-Goiás,
Diga-se logo em princípio.
Formosa é a queda d’água,
Situada no Corumbá,
Que ali altaneira deságua:
Lugar mais belo aqui não há.
O Corumbá leva mensagem
Lá do sertão para o mar,
Alguém disse com a linguagem
De quem bem sabia falar.
E lá na Fazenda do Salto,
A aurora da minha vida,
Como num pedestal bem alto,
A memória é ora vivida.
O quintal da minha morada,
Lá do sertão do Corumbá,
Era do açum-preto a pousada,
No alto de um jequitibá.
Nos arredores da fazenda,
Junto ao Salto do Corumbá,
Também ficava a vivenda
Do elegante lobo guará.
Da propriedade no quintal,
Havia muita goiabeira,
Mais adiante, um mangueiral,
Limoeiro e laranjeira.
Meu cão, Vigilante chamado,
Em minhas pernas se enroscava,
Com isso querendo um agrado,
E eu o seu dorso afagava.
De nome Xingu, o meu gato,
Às vezes comigo brincava,
Eu fazia gato e sapato,
E ele nem sempre gostava.
No terreiro de minha casa,
Minha mãe criava galinhas,
Que às vezes batiam asa,
Quando no poleiro sozinhas.
Os porcos daquela morada
Ficavam soltos, ao deus-dará,
Era uma bonita porcada,
A mais bela de Corumbá.
Amiúde a porcada ia
Espojar-se num pantanal,
Que na vizinhança havia
E alegrava o animal.
Lá na roça, meu pai plantava
Milho, arroz, cana e feijão,
E então zeloso cuidava,
De toda aquela plantação.
Montado num burrinho eu ia,
Até à roça, lá no Borá,
Nome de um corgo, onde eu via
Pés de pequi e jatobá.
A minha mãe escutando,
Cedo comecei a cantar,
Já com meu pai estudando,
Comecei a ler e contar.
Na cidade de Corumbá,
Foi onde cursei o primário,
E vários amigos fiz lá,
No meu convívio diário.
De nascimento, pois bem,
Sou cidadão cachoeirense,
Sou de sentimento, porém,
De bom grado corumbaense.
Santa Brígida (BA), novembro de 2014
Mário Bimbato, 73, mestre em Direito pela Universidade de Yale, é poeta e escritor.
Contatos:
Mário Bimbato
Tel.: (11) 3104-3192
E-mail: mariobimbato@gmail.com
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Minha casa no Boqueirão
Mário Bimbato
Minha casa no Boqueirão
É um oásis no deserto,
Neste pedaço do sertão
Tem muito coqueiro por perto.
Tem mangueira e cajueiro,
Tem mamoeiro e goiabeira,
Do mato verde o bom cheiro,
Tem o perfume da roseira.
Tem as madrugadas formosas,
Tem a passarada cantando,
E tem muitas flores mimosas,
Também periquitos voando.
Ouço à noite o cantar do grilo,
Bem como o coaxar da rã,
E tenho um sono tranquilo,
Pra só despertar de manhã.
Santa Brígida
(BA), outubro de 2014
Mário Bimbato, 73, mestre em Direito pela Universidade de
Yale, é poeta e escritor.
Contatos:
Mário Bimbato
Tel.: (11) 3104-3192
E-mail: mariobimbato@gmail.com
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De volta ao Boqueirão2
Mário Bimbato
Amigos, eis-me de volta à minha casa de campo no Boqueirão – casario situadono município de Santa Brígida, Bahia, e distantecerca de 45 km ao sul de Paulo Afonso,em pleno sertão baiano − onde estou passando umatemporadalonge do ar poluído de São Paulo, por indicação médica. No Boqueirão passei parte de minhas férias em julho último.
Partindo de São Paulo, viajeiaté aqui de carro, com meus doiscompanheiros de jornada, Edson eSandro. Foram quase três mil km de estrada, respirando o ar puro da natureza. Pernoitamos em Uberlândia, Brasília e Ibotirama (BA).
As rodovias, tanto as federais, quanto as estaduais, estão surpreendentemente bem conservadas, na maior parte dos trechos.
Preferi não viajar de avião, para evitar o ar poluído das aeronaves. Hoje em dia, apenas um terço do ar condicionado desses veículos é renovado, ao contrário dos anos 70, quando o ar era inteiramente renovado. Medidas de economia levam a tais disparates. Aliás, as viagens aéreas estão se tornando cada vez mais desconfortáveis.
Passamos pela Chapada Diamantina, região serrana da Bahia, onde viceja uma vegetação luxuriante, e de onde se descortina uma paisagemmagnífica. Ainda na Chapada, fomos a Lençóis, cidade histórica, nascida com a descoberta de jazidas de diamante em meados do século XIX.
O Ciclo do Diamante na regiãoatingiu seu apogeu entre 1844 e 1871. Foi precedidodo Ciclo do Diamante em Minas Gerais, iniciado em 1717, coincidindo o término deste com o início daquele.
Em Lençóiscostumam hospedar-se turistas que vão conhecer a Chapada. De lá saem emgrupos parapercorrer as diversas trilhas de turismo. Pode-se optar entre visitar grutas, tomar banho de cachoeira ou fazer caminhada.
A propósito, em Lençóis nasceu Afrânio Peixoto, médico, legista, professor, escritor, historiador e membro da Academia Brasileira de Letras.
Estivemos também em Bom Jesus da Lapa, com seu morroalembrar uma construção gótica, e suas grutas, uma das quais transformada em capela, conferindo à cidade umambiente místico.
Nessa capela, entoei os cantos natalinos “Ouve a teu Senhor, Belém” e “Tu vens lá das estrelas”, gravados em vídeo, que enviei a meus amigos, alhures.
Finalmente chegamos ao Boqueirão, depois de quatro dias de viagem. Aqui o calor é intenso, chegando a 38 graus. Mas na vasta planície, que caracteriza estepedaço do sertão, uma aragem afável ameniza as tardes calorentas.
Minha casa no Boqueirão está a cerca de 45 km ao norte de Jeremoabo, que fez parte do teatro de operações daGuerra de Canudos, onde Euclides da Cunha projeta sua sombra.
Usufruodo ócio em minha propriedade rural, lembrandoa aurea mediocritas, de que falava Horácio. Mecenas presenteou-o com uma casa de campo. Nada mais quis Horácio do que aquela áurea mediocridade.
No Boqueirão,avida é calma e bucólica. De manhã cedo, ouço o mugir das vacas, o balir das ovelhas e o tintilar das cabras da vizinhança. Enquanto isso, como diria Nelson Rodrigues, uma cabra vadia pasta a paisagem. Tudo, em suma,tem um efeito prodigiosamente reparador.
Há lugares interessantes ao redor para visitar, como o Raso da Catarina, que começa a cerca de 60 km daqui. O Raso, propriamente, é impenetrável aos humanos. Só a periferia é habitada.
A propósito, tenho quatro filhas adotivas – a mais velha com 16 anos, a mais nova com cinco – que são procedentes dessa região.
Aproveitando meu ócio no sertão baiano, fui, com o Sandro, a um passeio de catamarã, na represa do rio São Francisco, que deságua na Usina do Xingó.
Partimos de Canindéde São Francisco (SE) e navegamoscerca de 18 km rio acima, até chegar ao imponente cânion do Xingó, ondeme refresqueinas águas verdes e cristalinas do São Francisco.
Fui também, com meus companheiros Edson e Sandro, aPiranhas (AL), município alagoano banhado pelo São Francisco. A cidade, com sua bela arquitetura e seu casario colorido, mereceu o título de Patrimônio Histórico Nacional.
De Piranhas, navegamos numa lancha por 12km rio acima, aproximadamente, até chegar ao restaurante Angicos, onde desembarcamos.
Angicos é o nome da fazenda, então situada no município de Poço Redondo (SE), onde Lampião, Maria Bonita e nove cangaceiros foram emboscados e mortos pela polícia, em 1938. Próximo ao restaurante fica o sítio da chacina, aonde se vaipor uma trilha de 600m mais ou menos.
Com o apetite estimulado por um mergulho nas águas claras e refrescantes do São Francisco, almoçamos uma carne de sol no amplo restaurante, onde também se encontram redes para tirar uma soneca.
Outro passeio memorável foi a Porto de Galinhas (PE), praia famosa por suas belezas naturais e piscinas de águas mornas, represadas pelos recifes. Não só as belezas naturais, mas também o savoir-faire de seus habitantes fazem do lugar um mundo encantado, onde reinam morenas calipígias, como atesta o vídeo que enviei alhures a meus amigos.
Santa Brígida (BA), 16 de novembro de 2014
Mário Bimbato, 73, mestre em Direito pela Universidade de Yale, é poeta e escritor.
Contatos:
Mário Bimbato
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E-mail: mariobimbato@gmail.com
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Catarina
Core ‘ngrato (Catari, Catari)
De Cardillo e Cordiferro (1911)
Versão em português de Mário Bimbato (2014)
Catarina, Catarina,
Por que me dizes tais palavras duras?
Por que assim me falas e me amarguras, Catarina?
Não esquecer que te dei o meu amor, Catarina,
Não esquecer.
Catarina, Catarina,
Que coisa vem a ser
Esse falar que só me faz sofrer?
E tu não pensas nesta minha dor,
E tu não pensas, não queres nem saber.
Dama,
Dama ingrata,
Tu roubaste a minha vida,
E de longa data
Minha alma está ferida.
Catarina, Catarina,
Tu não sabes que até na igreja
Eu entrei e fiz uma prece a Deus, Catarina,
E também eu disse ao confessor
Que estou a sofrer por teu amor.
Que estou a sofrer, que estou a sofrer, não se pode crer,
Que estou a sofrer todas as agruras,
E o confessor, que é pessoa santa,
Disse: “Filho, melhor é esquecer,
É esquecer.”
Dama,
Dama ingrata,
Tu roubaste a minha vida,
E de longa data
Minha alma está ferida.
São Paulo, março de 2014
Acesse aqui a Partitura musical:
Core 'ngrato0001.pdf (3502749)
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O marinheiro
‘O marenariello
De Ottaviano e Gambardella (1893)
Versão em português de Mário Bimbato (2014)
Ei amor, depressa vem,
Vem logo me ajudar,
Também cá a rede vem,
Que já estou a puxar.
Estende a mim teus braços,
Ajuda-me a tirar,
Cá este marinheiro
Quer sempre te abraçar.
Namorando
À beira-mar,
Felizes, pois,
Vamos estar.
Sou um marinheiro,
Que o barco avia,
Mas de alegria
Eu vou morrer.
Ei amor, eu tiro o lanço,
E tu estás a olhar
Os peixes no balanço,
Como que a brincar.
E vê, até às estrelas
Tu fazes se encantar,
A este marinheiro
Tu fazes suspirar.
Namorando
À beira-mar,
Felizes, pois,
Vamos estar.
Sou um marinheiro,
Que o barco avia,
Mas de alegria
Eu vou morrer.
São Paulo, março de 2014
Acesse a partitura: